Fui acordada na madrugada daquele 5 de setembro de 2002 pelo telefone que tocava. Era uma amiga de infância, desesperada, aflita. “A Matriz está pegando fogo!” Primeiro, duvidei, achei absurdo demais. Incêndio na Matriz?! Como assim? “Estamos aqui, vendo essa tristeza”, relatou, direto do local do sinistro.Depois, ouvi narrativas de atos de heroísmo no impulso de tentar salvar o que fosse possível. Como as jovens moradoras do casarão bem ao lado da igreja, que se arriscaram para entrar no prédio em chamas e tirar de lá, à força do improviso, nossas amadas imagens, entre elas a de Nossa Senhora das Dores, de um dos altares da lateral da nave. Gente que entre espanto e lágrimas, demonstrou seu apreço pelo patrimônio, o qual ao guardar nossa história, traça nossa identidade, base do que somos e do que virá. A Matriz de Nossa Senhora do Rosário tinha sido restaurada há pouco quando o fogo a consumiu. Uma semana antes, passando perto dali, decidi entrar e fazer uma oração. Contemplei demoradamente a beleza do forro da capela-mor, dos artistas meia-pontenses Inácio Pereira Leal, Antônio da Costa Nascimento, o Tonico do Padre, e Francisco Herculano de Pina. Apreciei mais uma vez os entalhes do arco do cruzeiro e os anjos com trombetas, no alto das duas colunas. O belo altar central, revestido de dourado. Ao sair, admirei a construção imponente em ponto elevado, referência para toda a cidade.Foi uma despedida, embora eu jamais pudesse imaginar que aquela beleza seria em breve destruída. Um choque, tristeza sem tamanho para a comunidade, que precisou fazer o luto de perda tão dolorosa. Muitos tentaram negar o fato de que arte, como vida, é única. Extinta, não tem volta. Exigiram réplica do barroco, como se uma cópia pudesse trazer de volta a energia criativa de artistas e época. Ainda hoje, há quem alimente essa ilusão. A Matriz foi mais uma vez restaurada. No lugar do antigo altar, outro belo altar barroco, mais singelo e de alguma forma potente, porque resgata dívida histórica com os escravos, construtores de casas e templos, mas barrados na igreja dos brancos. Trata-se do altar da Igreja do Rosário dos Pretos, infelizmente demolida. Os excluídos da sociedade, mesmo lhe dando sustentação, são agora lembrados com o reconhecimento que merecem.Como em toda tragédia, o incêndio da Matriz e sua reconstrução nos conectaram ainda mais com nossas raízes, apontaram erros do passado e, serenada a dor, servem para nos ensinar a preservar melhor para as futuras gerações.