A crença em torno da tradição da Festa em Louvor ao Divino Pai Eterno está intimamente ligada à vida do lavrador Constantino Xavier. O ano é 1847. Pouco depois de encontrar um medalhão com a representação da Santíssima Trindade, às margens do Córrego do Barro Preto, e ser agraciado com milagres e bênçãos, o homem simples se dirige para Pirenópolis, a cerca de 120 km de sua cidade natal, Trindade.Solicita, então, ao escultor Veiga Valle, uma réplica do objeto. O artista plástico, entretanto, faz uma imagem. Com cerca de 30 centímetros de altura, a representação da Santíssima Trindade custou a Constantino o seu cavalo, já que o homem não tinha dinheiro para pagar a obra.O homem não poderia imaginar, porém, que 170 anos depois, a sua caminhada de volta inspiraria cerca de 2,5 milhões de fiéis a percorrer os quase 20 km, entre Goiânia e Trindade, à margem da GO-060.Durante os dez dias de celebração, a também conhecida por Rodovia dos Romeiros ‘abraça’ histórias de fé e devoção. O POPULAR não poderia deixar de relatar esse momento de apego sincero e fervoroso a Deus na maior festa religiosa do Centro-oeste, que teve início nessa sexta-feira (23).O “ex-jogador”Se em 2017 completam 100 anos da aparição e do milagre de Nossa Senhora aos três Pastorinhos, em Fátima, Portugal – o tema da Festa de Trindade, “Maria: serva humilde fiel ao Pai Eterno”, para o jogador amador e agora aposentado Joaquim Alves, 47, entretanto, tudo mudou há pouco mais de 17 anos.“Eu tive um acidente e fui atropelado. Estava parado, de moto, em Campinas e tive o meu pé direito esmagado por um carro. Fiquei 34 dias no hospital”, conta o homem, envolto em sua blusa de frio listrada, com a cabeça agasalhada por um boné surrado, apoiando-se com dificuldade em sua perna esquerda. A perna direita acidentada, ao andar, arrastava junto a si com dificuldades.Encontramos o Joaquim na altura do quilometro dez, no Centro de Apoio ao Romeiro. Enquanto mordiscava um pedação de pão e tomava um gole de suco, o ex-jogador da “era de ouro do futsal goiano” contou sobre a promessa feita no ano de 1999.“Além da possibilidade de amputar o pé, caso a cirurgia do fêmur tivesse alguma infecção, teriam que amputar também a minha perna inteira. Então eu fiz uma promessa. Se eu me recuperasse, e eu recebi a graça de não ter nenhum membro amputado, eu viria todo o ano. E a partir dessa data eu nunca deixei de vir”.Promessa de FamíliaEncontramos o fiel Gilmar Teixeira, de 56 anos, pouco antes do quarto quilômetro de caminhada. De chapéu, tênis e shorts de corrida, e acompanhado de duas mulheres, o homem contou que sempre participou do evento, mas que o ano de 2017 carrega um significado especial.“Eu tinha um sobrinho que ficou doente e acabou falecendo aos 27 anos. Um rapaz sadio que teve a síndrome de Guillain-Barré (doença autoimune grave que afeta o sistema nervoso). Ele ficou internado por dezesseis dias e, no desespero, recorremos a Fé. Fiz uma promessa. Se ele ficasse bom, viríamos a pé agradecer pela benção”, conta.Mesmo com o falecimento do sobrinho, o homem foi irredutível em seu intento. “Ele não sobreviveu porque foi da vontade de Deus, mas independente disso, eu tinha a obrigação de vir. Eu acredito realmente no poder da oração e acredito realmente na fé”, completa o senhor.Quando questionado se preparou de alguma forma para a caminhada, o senhor sorriu antes de afirmar. “Não tenho preparo não. É no improviso mesmo. Hoje mesmo eu me perguntei: ‘Será que eu consigo?’ Mas pela Fé, tenho certeza que sim, e o Divino Pai Eterno vai me ajudar a chegar lá!”, completou, logo após retomar os passos tranquilos de sua empreitada.PercepçõesJunto aos inúmeros comércios, pontos de apoio e viaturas de policiamento, ao longo dos muitos quilômetros, foi possível identificar padrões. Coesos e unos, durante o trajeto, fiéis tornavam-se figuras conhecidas. Das senhoras que passavam, ora animadas, ora centradas no imenso desafio que se estendia à frente ao moço de meia idade, botas e chapéu, com um terço na mão esquerda e a cantilena imutável de sua 'Ave-Maria' ou ao grupo que trotava, uniformizado, a passos rápidos e descontraídos, em uma conversa não tão descontraída assim sobre o atual cenário político brasileiro. E nossa Fé guiava-nos sempre em frente.“Vem na Fé de Deus”No terceiro painel da Via Sacra - monumentos que retratam a Paixão de Cristo no caminho da Romaria – encontramos as irmãs Marli dos Rios, de 53 anos, e Marlene Guimarães, de 52.Segundo Marli, o motivo da devoção foi uma promessa familiar feita há alguns anos. “Meu irmão sofreu um acidente de moto e ficou em coma, num estado muito grave. Minha mãe então pediu para virmos uma vez e isso já tem 33 anos. Nunca mais paramos”, afirmou a senhora, com um olhar que demonstrava um misto de orgulho, pelos anos de dedicação, e fé, pelo milagre recebido.Reencontro: “Não pode parar”Reencontramos Joaquim três quilômetros adiante, no km 12 da Romaria. ‘Fio’, como também é conhecido o ex-jogador, parou-nos para informar que andara ‘apenas’ doze quilômetros, não os quase 20 km como os demais, já que saíra do setor Vera Cruz, em Goiânia.Caminhando em seu próprio ritmo, sobrecarregando o peso de seu corpo em uma perna e arrastando a outra em cada passo rumo à Basílica-Santuário, reafirmava a sua fé. “Enquanto tiver forças para vir, eu virei”.GratidãoA vitalidade de Teresinha de Jesus, de 62 anos, chamava, e muito, a atenção. Com mais de 13 km de caminhada, às 21h13 minutos, numa subida íngreme, sem sinais de cansaço, a bem preparada senhora comentou.“Eu só faço hidroginástica, três vezes na semana. Caminhada eu não sou de fazer, não. Peguei e vou, vou ter firmeza e vou dar conta”. A ‘jovem-senhora’ enfrentava a quase maratona pela primeira vez.“Sempre tive vontade, mas é a primeira vez. Estou na Romaria para agradecer por tudo. Por estar bem, por poder andar”, afirmou.Teresinha, que estava acompanhada da filha e dos netos, resistia bem há pouco mais de três horas e meia de prova. “Pretendo voltar, enquanto conseguir andar, em vida, pretendo sim”, disse.Questionados sobre o fôlego necessário para os ainda sete quilômetros faltantes, o riso do animado grupo foi geral. “Dá pra chegar”, afirmaram, em uníssono. Logo em seguida, Teresinha completa. “Se Deus quiser”, contou, ao continuar o trote envolvido em um ritmo próprio de devoção.'Fio Maravilha' e o nosso até breveE, mais uma vez, reencontramos o nosso querido ‘personagem' quase no fim de extenuantes seis horas de caminhada. Joaquim, o 'ex-atleta', tão real descendo as escadas da imensa e imponente Basílica, quatro horas depois do nosso primeiro encontro, para e aperta nossas mãos.‘Fio’ sabe que apesar dos remédios, ‘calcanheiras’, palmilhas ortopédicas, da perda de mobilidade do pé direito e da atrofia dos movimentos da perna, que na própria caminhada encontrara pessoas que passam ou passaram por situações mais complicadas que a sua.Apontou então, um tanto quanto orgulhoso, outro tanto resiliente, a sua trajetória. “Não é fácil. Mas se eu não tivesse fé, estaria na cama até hoje”.Ao se despedir, comenta. “Que possamos nos reencontrar ano que vem". Se Deus quiser, querido companheiro, se Deus quiser!-Imagem (1.1299385)-Imagem (1.1299382)-Imagem (1.1299384)-Imagem (1.1299383)