O registro de mortes decorrentes de intervenção policial vem crescendo em Goiás. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que em 2017, o estado registrou 265 casos, representando 9,9% do total de homicídios. Já em 2020, foram 631 mortes praticadas por policiais em serviço ou não. Este número representou 29,1% do total de mortes violentas naquele ano: 2.167. Pesquisadores alertam para a ampliação de casos como o que vitimou quatro pessoas na Chapada dos Veadeiros em 20 de janeiro deste ano.Este é o caso mais recente em que a ação policial vem sendo questionada. A Polícia Militar informou na ocorrência que as vítimas eram traficantes de drogas e que os militares foram recebidos a tiros na propriedade onde a ocorrência foi registrada. Mas os moradores da cidade passaram a questionar e a realizar manifestações contrárias às versões apresentadas pelas mortes de Alan, Salviano, Chico e Jacaré. Todos são apontados pelos locais como pessoas queridas na comunidade e sem envolvimento com crimes.Os seis policiais que atuaram neste caso foram afastados para apuração. Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi), da Universidade Federal de Goiás (UFG), Dalva Borges de Lima questiona a ação. “O massacre na Chapada é apenas mais um cometido pela PM de Goiás. Abordar quatro trabalhadores rurais que possuíam apenas uma espingarda e chaciná-los com 58 tiros põe em xeque as já desacreditadas justificativas de ‘confronto em reação à injusta agressão’ que a PM-GO utiliza nos quase que diários homicídios cometidos.”A reportagem tentou contato com a Secretaria de Segurança Pública de Goiás durante mais de uma semana para respostas sobre o aumento dos números de mortes por intervenção policial, mas até a noite desta sexta-feira (11), não teve retorno. Os dados do anuário de segurança pública mostram que em 2017 foram 265 registros e no ano de 2020, o total foi mais que o dobro, chegando a 631. Com isso, o porcentual de mortes violentas fez com que Goiás chegasse à quarta posição nacional neste tipo de ocorrência. Neste mesmo período, houve redução de homicídios em geral (veja quadro).Dalva Borges entende que a sociedade, ao admitir a justificativa recorrente de “confronto”, associada à falta de transparência e de prestação de contas por parte da Secretaria de Segurança Pública, contribui para o crescimento dos índices de mortes decorrentes de intervenção policial que são colocados em sigilo pela SSP. “É como se em Goiás tivesse sido instituída a pena de morte e delegada esta tarefa à polícia.”Considerando o porcentual de mortes cometidas por policiais, Goiás fica em segundo lugar nacional, atrás apenas do Amapá. Em números absolutos, com dados de 2021, o estado é o quarto no ranking.Outros estados, como Rio de Janeiro e São Paulo, têm apresentado redução destes números. Dalva ressalta que em lugar algum, o uso abusivo da força por parte da polícia contribui para a redução de homicídios e a justificativa reversa, de que a diminuição dos homicídios é que aumenta o porcentual de mortes perpetradas pela polícia é uma falácia, mesmo que os números comprovassem essa redução.Parente de uma das vítimas mortas em novembro de 2020 em Cristalina, Michelly Nunes diz que até hoje sente falta do irmão, que morreu em uma ocorrência questionada até hoje. O irmão dela, Aleff Nunes, que tinha 22 anos, estava com mais dois colegas, Nelson e Francisco, caçando javalis. A Polícia Militar também informou troca de tiros na ocorrência. Os três eram trabalhadores da mesma fazenda onde as mortes foram registradas. Eles foram atingidos por pelo menos 43 tiros. O caso agora segue em sigilo e a reportagem não conseguiu atualizar o andamento das investigações.Michelly diz que teme que o caso caia no esquecimento, já que se passaram mais de 14 meses e o julgamento não foi realizado. Ela ainda diz que, desde o ocorrido, familiares e amigos das vítimas esperam que a investigação aponte o que de fato ocorreu. À época, a patroa das vítimas informou aos investigadores que os três eram trabalhadores e que saíram para caçar. “Nada vai trazê-los de volta, mas ainda assim esperamos que tudo seja esclarecido.”Advogado criminalista, professor e pesquisador da área, Alan Kardec Cabral Júnior diz que o aumento destes casos preocupa porque são homicídios pelas mãos do Estado. Ele diz que, infelizmente, algumas vezes, estes casos contam com o encobrimento do sistema de justiça criminal. “Ou seja, podemos estar passando o recado que a pena de morte é permitida. Porém, quem faz esse julgamento? O próprio policial na rua, sem direito a ampla defesa e ao contraditório.”TrindadePai de Wilker Darcian Camargo, de 35 anos, o policial aposentado Moacir Divino Camargo lamenta a morte do filho, em dezembro do ano passado. Ele diz que o filho não teve direito à defesa. Os policiais alegaram que estavam monitorando a vítima porque seria um traficante de drogas. “O que fizeram com meu filho, à luz do dia, não se faz. Ele foi arrastado para ser morto. As imagens (do caso registradas à época) mostram como tudo aconteceu, é muito dolorido para mim cada vez que eu vejo ou lembro disso tudo.” Moacir realizou manifestação na companhia de amigos e familiares no último dia de janeiro para que o caso não seja esquecido.Wilker foi morto durante uma abordagem policial em Trindade, Região Metropolitana de Goiânia, no dia 10 de dezembro. “Se no Brasil não tem pena de morte, eu posso dizer que meu filho foi assassinado. Ele foi morto pelas pessoas que deveriam proteger. Ele não era traficante, ele foi executado. Não teve o direito de se defender.” No vídeo gravado por uma pessoa que acompanhava de longe, é possível ver quando Wilker é arrastado por três policiais para dentro de um imóvel e, logo em seguida, é possível ouvir um disparo de arma de fogo. A Polícia Civil não divulgou informações sobre o caso, mas informou que a investigação já está avançada.Especialistas defendem reduçãoA pesquisadora do Necrivi Dalva Borges de Lima afirma que também é necessário questionar quais são os procedimentos autorizados. “É claro que o uso da força está sendo feito de maneira desproporcional e essas chacinas só alertam para isso.” Ela ainda aponta que na proporção de policiais mortos em relação aos civis vitimados pela polícia, Goiás comparece com o primeiro lugar do ranking no Brasil. “Para cada policial morto há 210,3 civis que são mortos pela polícia. A mesma relação no Brasil é de 33,1%, alta, mas bem abaixo da do Estado. Ou seja, como se dão esses ‘confrontos’?”Para Dalva Borges, é necessário que Goiás modifique seu discurso e elabore um plano de redução de mortes cometidas pela polícia. Ela comenta de outros estados que já conseguiram êxito nisso, como em São Paulo, que vem utilizando câmeras nos uniformes dos policiais. “Ela também protege o policial que age corretamente e utiliza a força de forma legal.” Para a pesquisadora, as câmaras são instrumentos importantes, mas não suficientes. Ela entende que seja necessário rever os procedimentos e a orientação da política de Segurança Pública, garantindo direitos humanos e preservando o Estado democrático de direito e isso só é possível mantendo a ação policial dentro da lei.O advogado Alan Kardec Cabral Júnior reforça que não há uma fórmula pronta para reduzir a letalidade policial, sobretudo por haver no dia a dia policial casos em que há, de fato, o confronto. “Então nada mais justo que o policial, na proteção de sua vida ou de terceiros, possa agir em legítima defesa.” Por outro lado, para tentar coibir este crescimento, é necessário uma boa vontade do poder público em implementar políticas públicas criminais que desencorajem os autores de realizar um confronto letal, reservando tal ação para casos estritamente necessários.Como exemplo, além das câmeras, ele cita instalação de GPS nas viaturas, com garantia de armazenamento e sem possibilidade de edição. Ele também defende o treinamento das forças policiais, especialmente contemplando a sensibilização para a necessidade de respeito aos direitos humanos e para a questão do racismo estrutural, entre outros pontos. Ele defende a proibição de remoção dos corpos com pretexto de socorro às vítimas e caso seja necessário, que conste detalhadamente no registro da ocorrência. Ele também defende que seja determinado que se realize reprodução simulada nos casos de versões diferentes dos fatos.Os dois pesquisadores questionam a atuação do Ministério Público, especialmente porque, segundo eles explicam, poucos casos são denunciados à Justiça. Para os estudiosos, a instituição não tem cumprido o papel de acompanhar e denunciar os casos de mortes praticadas por policiais de maneira ilegal.Em março do ano passado, O POPULAR mostrou que apenas uma entre 200 mortes por intervenção policial vira processo na Justiça. A informação se refere a um levantamento feito pela reportagem em 316 inquéritos de homicídios por policiais. Eles referem-se ao período de 2017 a 2019.NúcleoNo meio da crescente de casos de mortes decorrentes da ação policial, o Ministério Público de Goiás (MP-GO) criou um núcleo para acompanhar as apurações. Nem todas elas são conduzidas pelo órgão, mas todas são assistidas e, se houver necessidade, auxiliadas por promotores. Coordenador do Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial, Felipe Oltramari diz que tem observado o aumento e que existem ações sendo realizadas para a garantia da apuração adequada.Em 2014 foi criado o Grupo Especial do Controle Externo da Atividade Policial (GCeap). Este foi remodelado para que se tornasse mais operacional, o que fez com que fosse criado o núcleo. Existem dois promotores exclusivos para acompanhar casos, sejam de morte ou outros crimes praticados por policiais militares, civis, penais e guardas civis. Ele afirma que o núcleo vem sendo estruturado para que todos os casos possam ser minuciosamente acompanhados. Há também uma nova normativa que vai permitir, em breve, que todos os promotores, em qualquer cidade, possam realizar o acompanhamento destes casos. Atualmente todos os casos goianos se concentram em dois promotores.Além disso, espera-se que os resultados que já vêm sendo apresentados, como as prisões dos policiais que atuaram na ocorrência que terminou com a morte Chris Wallace da Silva, de 24 anos, em novembro passado, sirvam para revisão da conduta policial. Os militares teriam espancado o rapaz, que tinha câncer nos ossos e estava com a saúde debilitada, segundo a família. O rapaz chegou a ser socorrido, mas morreu logo depois. Os policiais continuam presos.-Imagem (1.2401770)