Não é uma terapia recente, mas diante da pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2), em que as condutas de tratamento vêm sendo experimentadas com o avançar do número de casos de Covid-19, a transfusão de plasma de convalescente voltou a ser resgatada. Em todo o mundo estudos sobre o procedimento têm apresentado resultados satisfatórios e de segurança. Embora seja um protocolo experimental, em Goiás a demanda pelo plasma de recuperados da doença é maior do que a oferta, levando os bancos de sangue a se mobilizarem em busca destas pessoas.Vice-presidente do Sindicato dos Laboratórios de Análises e Banco e Sangue no Estado de Goiás (Sindilabs- GO), Antônio César Teixeira, explica que aumentou muito a prescrição do plasma para pacientes em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Sem estoque, familiares e amigos do doente têm feito campanhas nas redes sociais em busca de doadores, pessoas que passaram pela doença e se curaram. “É uma terapia sem comprovação científica e não tem efeito colateral. Nada indica que vai resolver o problema. Meu sogro teve Covid, fez o plasma, mas não resistiu”, enfatiza.Foi o que ocorreu com a professora Winnie Rakel Rodrigues, de 40 anos, que morreu no início deste mês em Goiânia. Ela recebeu o plasma no dia 7, mas faleceu no dia 12. O fisioterapeuta Márcio Silva, de 41, que ficou 15 dias internado num hospital privado de Ceres (GO), cinco deles na UTI, teve resultado diferente. A família pediu ajuda pelas redes sociais para que ele tivesse acesso ao plasma. “O padrão respiratório e o estado geral dele melhoraram. Se não tivesse tomado o plasma a condição seria pior”, acredita a mulher, Tuane Dias que agora cuida do marido em casa, em plena recuperação.O cirurgião cardiovascular Aleksander Dobrianskyj, de 66 anos, internado durante o mês de abril em estado grave, foi o primeiro paciente de Goiás a receber plasma de convalescente de Covid-19. Para fazer a transfusão, a infectologista Christiane Kobal que o assistiu realizou uma videoconferência com hematologistas para discutir a questão ética da medida. “Começamos a atender pacientes com Covid-19 em Goiás no dia 11 de março, não sabíamos muito. Já havia uma sinalização de estudos sobre uso de plasma de convalescente nos Estados Unidos, Europa e China com pessoas que se curaram. O caso do médico era de extrema gravidade e no Brasil não havia legislação permitindo o procedimento”, lembra ela.Logo em seguida a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) soltou nota técnica estimulando o recrutamento de doadores, mas deixando claro que a efetividade do plasma de convalescente em pacientes infectados precisava ser demonstrada por ensaios clínicos randomizados. É a mesma opinião de Christiane Kobal, que preside a Sociedade Goiana de Infectologia. “Plasma não é para salvar ninguém e pode não mudar a evolução do paciente. Por enquanto é uma possibilidade terapêutica. Até o momento não há comprovação científica de sua eficácia.”Diante da ausência de um antiviral realmente eficiente no combate à Covid-19, médicos têm indicado a terapia plasmática. Na Nota Técnica Nº 19, de 3 de abril deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deixou claro que não há evidência científica, embora tenha reconhecido que os estudos sejam promissores. A orientação da Anvisa é de que o plasma convalescente para Covid-19 seja usado em protocolos de pesquisa clínica.No mundo inteiro há estudos sobre o tema, dezenas deles no Brasil, como o realizado pelo Hemocentro de Goiás (leia mais nesta página). Todos serão comparados na tentativa de se encontrar um denominador comum. Resultado preliminar de um estudo norte-americano em 20 mil pacientes não aponta dados sobre eficácia, mas revela que o plasma de convalescente é seguro, não apresentando efeitos colaterais ao paciente.“Nossa observação junto aos pacientes é que, caso seja comprovada a eficácia em estudos a ser divulgados na próxima semana, o racional é fazer a transfusão naqueles moderadamente doentes. Estes iriam se beneficiar mais do que pacientes em estado grave, com ventilação mecânica, internados há cerca de 14 dias. Mas isso é uma possibilidade”, enfatiza Christiane Kobal. Aumento no número de transfusões Nesta pandemia o Hemolabor inaugurou em Goiás as atividades relacionadas ao plasma de convalescente. “Definimos o protocolo no dia 27 de março, aprovado pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), e no dia 1º de abril começamos”, conta o coordenador do banco de sangue da instituição, Luis Henrique Ribeiro Gabriel. Até o dia 19 foram realizadas 132 coletas e atendidos 150 pacientes em 46 hospitais. “Alguns tomam duas até quatro bolsas de 200 a 600 ml, mas a quantidade varia conforme o peso do receptor. Em média estamos fazendo 300 ml”, explica o hemoterapeuta. O Instituto Goiano de Hemoterapia (IGH) e o Instituto Goiano de Oncologia e Hematologia (Ingoh) também aderiram à proposta com aprovação do Conep, O primeiro, desde junho, tem feito entre quatro e cinco coletas semanais. “Às vezes o paciente está aguardando. Não chegamos nem a congelar o plasma”, diz o diretor do IGH, Antônio César Teixeira. O Ingoh informou que desde junho até a última quarta-feira (22), 400 pessoas procuraram a instituição interessadas em doar plasma, dos quais 68 puderam efetivar. Foram coletadas 226 bolsas e distribuídas em 15 hospitais de Goiânia e do interior beneficiando 90 pacientes. A Anvisa orienta que o processo seja realizado como ensaio clínico, uma forma de coletar dados sobre a eficiência ou não do procedimento. A família do paciente precisa assinar um termo autorizando a terapia no qual está explícito que não há comprovação científica de sua eficácia e que o procedimento é experimental. O que se discute é se a cobrança é legal. “Os bancos de sangue arcam com os custos dos exames, do kit descartável que é importado para colher o plasma, da sorologia, do trabalho profissional. A Agência Nacional de Saúde não obriga o ressarcimento pelo plano de saúde, então alguém tem de arcar com os custos”, diz o presidente do Sindilabs-GO, Antônio César Teixeira. O POPULAR apurou que, em média, uma bolsa de plasma de 300 ml custa ao paciente em torno de R$ 3 mil. Nas redes sociais são inúmeras as campanhas não apenas para conseguir doadores de plasma, mas também de recursos para arcar com este custo. “Uma diária de UTI custa no mínimo R$ 3 mil, esta terapia pode reduzir de duas a cinco diárias”, afirma o presidente do Sindilabs. O Hemolabor informa que enquanto aguarda um posicionamento legal não tem emitido fatura. “O atendimento é compassivo, não cobramos exames, processamento, armazenamento e nem a transfusão”, diz Luis Henrique Ribeiro Gabriel. O Ingoh explica que, além do termo de livre adesão, familiares ou pacientes assinam um contrato de prestação de serviços cujo valor cobrado é chancelado por tabelas médicas. Integrante do Conselho Deliberativo da ABHH, Renato Sampaio disse ao POPULAR que há dois meses a entidade encaminhou ao Ministério da Saúde (MS) um questionamento a respeito do uso do plasma de convalescente. “A nota técnica da Anvisa tem um caráter dúbio porque diz que o procedimento tem de ser feito como ensaio clínico e é experimental, mas que também pode ser usado de maneira compassiva e não faz referência a cobrança”. Pessoalmente acredito que deveria haver um ressarcimento dos custos, pois estes são altíssimos”. Hemocentro realiza estudo sobre plasma O Hemocentro Coordenador Estadual Prof. Nion Albernaz de Goiás, vinculado à Secretaria Estadual de Saúde (SES), gerido pelo Instituto de Desenvolvimento Tecnológico e Humano (Idtech), é a única unidade do Sistema Único de Saúde (SUS) a desenvolver um projeto de pesquisa sobre a infusão do plasma de convalescente. “Diante da pandemia de Covid-19, da necessidade de novos tratamentos, precisamos ter uma resposta do ponto de vista científico. Não podemos passar ao largo de tudo isso e não ter conhecimento científico sobre o que aconteceu”, explica o médico Marcelo Rabahi, coordenador de ensino e pesquisa do Idtech e um dos responsáveis pela pesquisa. Cerca de 20 profissionais estão debruçados no trabalho, espalhados pelos hospitais alvo e no Hemocentro. O estudo prevê a participação de 140 pacientes de Covid-19 divididos em dois grupos. A metade irá receber plasma e a outra não. Para isso, é preciso reunir plasma suficiente, o que levou o Hemocentro a fazer uma campanha para que convalescentes de Covid-19 façam doações. Marcelo Rabahi explica que 30 dias após a infusão no último paciente é provável que sejam divulgados os resultados preliminares, o que pode ocorrer em outubro. “A infusão de plasma não é a salvação de tudo. É uma terapia carente de confirmação científica. Não basta ser segura, é preciso ter eficácia e isso vamos descobrir com o estudo.” Conforme Marcelo Rabahi, para o trabalho serão selecionados pacientes de Covid-19 internados em unidades da rede pública de saúde como o Hospital de Campanha, o Hospital de Urgências Otávio Lage (Hugol), Hospital Alberto Rassi (HGG) e Maternidade Oeste. A expectativa é que as infusões tenham início já na próxima semana. O estudo segue todos os trâmites legais e foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Voluntários que já tiveram Covid-19 e estão curados que queiram colaborar com o estudo podem procurar a sede do Hemocentro, na Av. Anhanguera, Setor Coimbra, em Goiânia ou entrar em contato pelo e-mail plasma.hemocentro@idtech.org.br ou pelo telefone (62) 3201-4101. Para doar é necessário ter idade entre 18 a 60 anos, peso igual ou acima de 60 Kg, apresentar resultado de teste positivo para Covid-19 e estar sem sintomas há mais de 14 dias. Mulheres não podem ter engravidado antes. Um voluntário pode fazer até três doações em intervalos de 14 dias. Uso através da história O plasma de convalescente é utilizado desde o século 19. O primeiro estudo a respeito data de 1892 e teve como alvo o tratamento da difteria, doença bacteriana que atinge amígdalas, faringe, laringe e nariz. Quando veio a pandemia da gripe espanhola, em 1918, a terapia plasmática foi usada potencialmente com queda de 21% nas taxas de mortalidade. Nos anos de 1920 o tratamento foi retomado para combater a escarlatina, mal também provocado por bactéria, e mais tarde para tratar de coqueluche, infecção respiratória que tem como característica a tosse seca, o que ocorreu até 1970. Enfim, desde a gripe espanhola, médicos recorrem com frequência à terapia plasmática para estancar uma variedade enorme de infecções virais. No início dos anos 2000 pesquisadores revisaram oito estudos feitos no século passado com 1.700 pacientes de gripe espanhola que usaram a terapia. O objetivo era avaliar a possibilidade de aplicação na epidemia de gripe aviária (H5N1). A conclusão foi de que, apesar dos bons resultados, as metodologias de pesquisa aplicadas à época não tinham o mesmo rigor científico de hoje, necessitando de ensaios clínicos nos padrões atuais. Apesar disso, a terapia foi usada na gripe aviária; no combate ao coronavírus que provocou o surto de Sars na China, Em 2003; na pandemia da gripe H1N1; contra o coronavírus causador do Mers-Cov, Síndrome Respiratória do Oriente Médio; e também contra o ebola, na África. Entre 2014 e 2016 o ebola matou 11 mil pessoas na África Ocidental. Como ocorre a plasmaferese De cor amarelado e transparente, o plasma sanguíneo é a parte líquida do sangue. É nele que estão concentrados os anticorpos que combatem os vírus. Quando uma pessoa é infectada e se recupera, os anticorpos continuam no sangue esperando para combater o vírus, caso ele retorne. Quando injetados em outra pessoa com a mesma doença, reconhecem o vírus como algo para atacar. Estudos mostram que a transfusão do plasma de um paciente curado de Covid-19 para um infectado tem reduzido sintomas de infecção e da carga viral no organismo. Até agora o procedimento vinha sendo feito em pacientes graves, mas há pesquisas recentes que apontam resultados promissores quando a transfusão ocorre no início da doença. Alguns protocolos precisam ser seguidos no processo. O tipo de sangue de doador e receptor tem de ser compatível; o doador tem de ter idade entre 18 e 60, além de apresentar comprovantes de que teve Covid-19 e já estar curado. Ele será submetido à sorologia normal para saber se é portador de sífilis, chagas, hepatite C ou B, HIV, etc. Se for uma mulher, não pode nunca ter engravidado. Após preencher este perfil serão dosados os anticorpos presentes no sangue. Quando o indivíduo tem infecção por vírus ele produz anticorpos IGM e IGG. IGM positivo indica que a doença ainda está ativa e IGG positivo mostra que a pessoa é convalescente. Somente plasma com IGG positivo será aplicado no paciente doente.-Imagem (1.2091475)