Uma corrida às farmácias, pessoas comprando caixas de hidroxicloroquina na crença da cura milagrosa para os efeitos da Covid-19 e ao mesmo tempo pacientes que usavam a medicação de forma contínua se viram em um cenário desesperador que começou em março de 2020. O medicamento, que é utilizado por pessoas diagnosticadas com lúpus entre outras doenças reumatológicas, chegou a custar quase seis vezes o valor normal quando era encontrado para comercialização.Sem comprovação científica para Covid-19, mas essencial para outras enfermidades, sua escassez podia ampliar os efeitos das doenças. Agora, apesar da venda normalizada, houve alteração na exigência das receitas e a herança da ‘febre’ da cloroquina permaneceu para quem precisa, de verdade, do remédio.Em Goiás, a estimativa da Sociedade Brasileira de Reumatologia é de que aproximadamente 2.120 pessoas tenham lúpus, doença inflamatória crônica de origem autoimune que engloba a conscientização do Fevereiro Roxo. Apesar de não estar diretamente relacionado a sexo ou idade, é mais comum em mulheres diagnosticadas entre 20 e 45 anos. A reumatologista Ana Carolina Montandon, que também é coordenadora do ambulatório de lúpus do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG) explica que a recomendação é que todas as pessoas diagnosticadas com a doença devem tomar o remédio, exceto em casos de alergia ou alguma contraindicação.Ana Carolina Montandon trabalha como reumatologista há 20 anos e disse que nunca passou por situação parecida antes neste tempo de profissão. “Tivemos relatos de pessoas comprando caixas e armazenando em casa. Faltou um pouco de coletivo, de olhar para o próximo. Não podemos pensar apenas em nós mesmos. Na rede particular tivemos a opção de manipular, mas com aumento da procura e alta do dólar, chegamos a achar a caixa por R$ 400 reais, antes vendida por R$ 70. Este é um medicamento de depósito que ainda permanece no organismo por até seis semanas. Diminuímos dosagem, recomendamos que pacientes tomasse dia sim, outro não, mas a medicação serve para controlar a doença, então em 30 dias, há uma piora significativa do quadro”, explica a médica.Kênia Larissa Santos, 31 anos, é professora e em 2018 foi diagnosticada depois de uma hemorragia forte e vários diagnósticos equivocados anteriormente. Desde então ela faz acompanhamento médico e também o tratamento com hidroxicloroquina em uma dosagem de 400mg/dia. Em abril e maio do ano passado, a professora não conseguiu comprar, mas explica que não ficou sem porque conseguiu doações. “Com a distribuição de ‘kits-Covid’, alguns amigos e conhecidos me davam cinco ou 10 comprimidos. Realmente não encontrava e depois passei a achar em algumas farmácias menores, de bairro, com variação de preço de até 300% e estava fora do meu alcance financeiro naquele momento. Quando percebia que estavam acabando, tomava em dias alternados”, recorda.Depois da exigência da receita médica, Kênia explica que outros problemas surgiram. Isso porque o pedido vale apenas por dois meses e aí retornar ao médico neste período passou a ser obrigatório. Para quem tem plano de saúde, uma questão de agenda. Quem paga particular, um novo gasto. “No geral foi um problema grave. Fiz campanha nas redes sociais e vi outras pessoas fazendo porque quem precisa do medicamento não tinha acesso. É uma garantia de qualidade de vida. Vivo na capital com fácil acesso a médicos, mas sei que quem mora no interior, por exemplo, é inviável uma consulta mensal, bimestral, com especialista. A população precisa entender que este medicamento não é adequado para o tratamento da Covid”, finaliza.Rede públicaEm Goiás, o medicamento é distribuído gratuitamente para pacientes registrados na Central de Medicamentos de Alto Custo Juarez Barbosa (Cemac), vinculada à Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO). Segundo dados da pasta, 1.915 pacientes recebem mensalmente, assim distribuídos: 1.686 em tratamento de lúpus eritematoso; 203 com artrite reumatoide; e seis com dermatomiosite e polimiosite. A última aquisição feita pelo Estado foi antes da pandemia e o valor pago foi de R$ 40,80 pela caixa. Como a compra é anual, não houve falta do remédio.Correlata – “Estamos atendendo pacientes em situação mais grave”, diz coordenadora do HCO ambulatório de lúpus do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG) é responsável pelo atendimento de até 700 pacientes de todo o Estado, que representa aproximadamente 1/3 do total. No início da pandemia, com a suspensão dos atendimentos eletivos, houve imediatamente um afastamento dos pacientes da unidade de saúde. Atualmente, entretanto, apenas 50% dos pacientes retornaram para as consultas e a consequência tem sido casos mais graves da doença.Ana Carolina Montandon, reumatologista e coordenadora do ambulatório do HC-UFG conta que como o local atende o Estado todo há casos diversos. Cita como exemplo as pessoas que utilizam transportes disponibilizados pelas prefeituras e que deixaram de vir à capital para atendimento. “Estamos tendo pacientes mais graves pela própria doença reumatológica. Temos pacientes que estão sem retornar desde o início da pandemia, há um ano. Meu pedido é que não abandonem o tratamento. Durante o tempo em que as consultas estavam suspensas, estávamos atendendo apenas casos graves, mas agora estamos fazendo agendamento e precisamos do retorno”, completa a especialista.HGGAlém do HC, o Hospital Estadual Alberto Rassi (HGG) também é referência no atendimento de lúpus no Estado. Durante a pandemia, a unidade foi designada pela SES como de retaguarda, o que permitiu que os pacientes de lúpus continuassem a receber atendimento médico no ambulatório e para internações, quando necessário. No ano passado, a média mensal de atendimentos ambulatoriais de pacientes com diagnóstico de lúpus foi de 32,33 com média mensal de internações de 2,42 pacientes. Em 2019, a média mensal foi de 30,50 nos ambulatórios, mas a internação dos casos mais graves era menor, de apenas 1,27 mensal.Subdiretora técnica de Clínica Médica do HGG, a reumatologista Fábia Mara Gonçalves Prates explica que a maioria dos pacientes que chegam à unidade já chegam em estado grave e acabam retornando, em seguida, para acompanhamento. Diz ainda que durante a pandemia, os pacientes com situação mais controlada foram atendidos por teleconsulta. “Quem precisava de internação foi atendido e recebemos muitos pacientes que antes eram da Santa Casa de Misericórdia e também do HC e que vieram por meio de solicitação de internação da rede primária”, finaliza.