Um dos casos mais rumorosos da crônica policial brasileira nos anos de 1990 chegou este ano à televisão em forma de documentário e vem chamando a atenção. O assassinato do garoto paranaense Evandro Ramos Caetano, de 6 anos, que à época ocupou muito espaço na mídia, voltou à tona no final de 2018 pelo consistente trabalho de Ivan Mizanzuk, idealizador do Projeto Humanos, no qual está incluído o Caso Evandro em forma de podcast. A pesquisa de dois anos feita pelo professor e escritor paranaense, agora transformada em documentário com o selo Globoplay, guarda semelhanças com o Caso Michael, ocorrido em Goiânia em 1989 e que, igualmente, causou comoção por envolver o sacrifício de crianças em rituais de magia negra.Michael Mendes, de 4 anos, morava com a mãe adotiva no Setor Coimbra, em Goiânia, quando desapareceu em 8 de abril de 1989. O corpo do garoto foi encontrado por populares 13 dias depois num lote baldio, a dois quilômetros do centro de candombléIxêAlêOxalufã, no Setor Rio Formoso. A criança foi degolada, teve os dedos arrancados, os dentes quebrados e seu corpo, semienterrado e já iniciando a decomposição, estava recheado de farofa. Em volta, foram deixadas velas, garrafas de aguardente, fitas vermelhas e comida.Investigações da Polícia Civil à época apontaram a massagista Elsa Soares da Silva, então com 58 anos, como a mandante do crime. Segundo relatórios, a mulher nutria rejeição a homossexuais desde que seu ex-marido assumira ser bissexual. Mais tarde, em novo relacionamento, descobriu que o homem, bem mais jovem que ela, se relacionava com um comerciante. Teria sido este o motivo que a levou a procurar o pai de santo Willian Domingos da Silva com a proposta de realizar um ritual de magia negra para afastar o concorrente. Como o ritual exigia o sacrifício de uma criança, o escolhido foi Michael Mendes, garoto com necessidades especiais, seu vizinho.A polícia teve dificuldades para desvendar o caso. Pelo menos sete delegados assumiram as investigações e todos os indícios apontaram para Elsa, como a mandante do crime e o envolvimento de Willian e outras cinco pessoas ligadas ao centroIxêAlêOxalufã. Durante busca na casa dela foram encontradas garrafas de cachaça, velas de cores variadas, chifres de vaca, bonecos de pano (do tipousado em vodu), machadinha, entre outros elementos associados a rituais de magia negra. Willian e Elsa chegaram a ser detidos, mas sem provas materiais foram liberados.Em janeiro de 1998, com as investigações em andamento, Elsa saiu do Brasil. Em setembro daquele ano, o adjunto da então Delegacia Estadual de Homicídios, Adão Lopes Pereira, voltou a trabalhar no inquérito, mas alegando ter encontrado entraves porque a família de Michael também tinha mudado de endereço, decidiu remeter os autos ao Judiciário sem indiciar ninguém. Na ocasião, em entrevista à imprensa, comentou que preferiu deixar para o Ministério Público (MP) a incumbência de indiciar quem achasse conveniente. Àquela altura o MP havia criticado duramente os investigadores acusando-os de trabalharem de forma atabalhoada, envolvendo pessoas que nada tinham a ver com o caso.Emaranhado de fatos Aposentado há décadas, Adão Lopes Pereira tem poucas lembranças do fato. Ele diz que ficou pouco tempo na Homicídios e que muitos colegas comandaram as investigações. “Foi realmente um caso complicado, mas não lembro de muita coisa, muito menos de enviar os autos para o Judiciário”, disse ele ao POPULAR. O delegado aposentado foi vítima da Covid-19 há alguns meses, doença que, segundo ele, trouxe danos para sua memória.Em maio de 2001, já respondendo por uma das Varas Criminais de Goiânia, o juiz Jesseir Coelho de Alcântara solicitou à Interpol que localizasse Elsa no exterior. Elsa, que estaria morando nos Estados Unidos, pediu a revogação da prisão e prometeu se entregar em setembro daquele ano. Ela alegou que deixou o País por dificuldades financeiras e por temer tortura para confessar o crime. Sua partida para o exterior, segundo a massagista, foi comunicada à polícia.Hoje respondendo pela 1ª Vara Criminal de Goiânia, o juiz Jesseir Coelho de Alcântara lembra que “o caso Michael Mendes foi emblemático e chamou a atenção de veículos de imprensa não apenas de fora de Goiás, mas também do exterior”. Pelo menos dois outros magistrados conduziram o processo, como Mônice de Souza Balianque, em outubro de 2001 decretou a prisão temporária de Willian Domingos da Silva, de Elsa Soares da Silva, de Alexandre dos Santos Selva Neto, o Omar Kayan, e de Eva dos Santos Marinho, que eram ligados ao centro de Willian. Àquela altura, Alexandre e Eva já tinham morrido, o primeiro por circunstâncias não totalmente esclarecidas e a segunda, assassinada.NegarÀ Justiça, Willian Domingos disse estar sendo perseguido por seguir religiões de matrizes africanas e negou qualquer ato de magia negra. Elsa retornou ao Brasil em novembro de 2002 e também negou ser a mentora do crime. Ambos passaram a responder ao processo em liberdade. Somente em março de 2008 a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás manteve a decisão de primeiro grau que mandou ambos a julgamento por um júri popular.O julgamento ocorreu em janeiro de 2009, quase 20 anos depois do crime. Mesmo com a defesa alegando falta de provas, Elsa foi condenada a 18 anos de reclusão e Willian a 19, mas ficaram em liberdade. Esgotados todos os recursos feitos pela defesa, o pai de santo foi preso em 2011. O POPULAR apurou que ele cumpriu pena em regime fechado até 2017 quando recebeu livramento condicional. Elsa nunca chegou a ser presa.Em 2014 um inquérito policial sobre a morte de uma pessoa idosa chamada Elsa Soares da Silva, encontrada sem vida em sua residência no Conjunto Vera Cruz 2, em Goiânia, onde morava sozinha, chegou ao Judiciário. O corpo já estava em processo de decomposição e foi encontrado por um vizinho. Como não havia indícios de violência, o inquérito foi arquivado. Não se sabe se o cadáver pertencia à mesma pessoa acusada de ser a mentora de um dos mais bárbaros crimes da história policial goiana. Acusadas no Paraná lançam livroO Caso Evandro também ficou conhecido como As Bruxas de Guaratuba porque apontou como principais envolvidas a primeira-dama da cidade paranaense, Celina Abbage, e sua filha, Beatriz. Pelas investigações, elas teriam encomendado o sacrifício de crianças em rituais macabros para manter o poder político na família. Em julho de 1992, três meses após o corpo do garoto ter sido encontrado, o jogador de búzios Osvaldo Marcineiro, conhecido como pai de santo, o pintor Vicente de Paula Ferreira e o artesão Davi dos Santos Soares foram presos e confessaram o crime. Eles disseram que as duas mulheres eram as mentoras e participaram diretamente dos rituais. O medo se espalhou no Paraná, onde várias outras crianças tinham desaparecido. O caso teve cinco julgamentos. O primeiro, em 1998, com 34 dias, foi o mais longo da história do Judiciário brasileiro. Celina e Beatriz foram inocentadas, mas o Ministério Público do Paraná recorreu. Celina chegou a ficar presa em regime fechado por quase quatro anos e a filha por aproximadamente seis. Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos e Vicente de Paula foram condenados em 2004. Em 2011, em novo júri, Beatriz foi condenada a 21 anos de prisão e a mãe não foi julgada por ter mais de 70 anos e o crime estar prescrito. Beatriz obteve perdão da pena.Ivan Mizanzuk pesquisou dois anos antes de lançar 37 episódios em podcast no gênero storytelling (contar histórias) dentro do Projeto Humanos. E é neste trabalho de fôlego que se baseia o documentário que começou a ser exibido pela Rede Globo. Ivan Mizanzuk também lançou o Caso Evandro em forma de livro pela editora Harper Collins Brasil.Celina e Beatriz Abbage, hoje com 82 anos e 57, respectivamente, acabam de lançar o livro Malleus: Relatos de Tortura, Injustiça e Erro Judiciário” pela editora BrazilPublishing Autores e Editores Associados dando a sua versão dos fatos. Na obra elas dizem que foram torturadas para confessar a participação no crime. O nome do livro é uma alusão a um manual usado durante a Idade Média denominado “MalleusMaleficarum”, ou Martelo das Bruxas.Caso Os emasculados de Altamira levou o Brasil para corte no exteriorIvan Mizanzuk já anunciou que pretende relembrar este ano, agora com o selo Globoplay, outro caso rumoroso, o dos meninos emasculados em Altamira (PA). De acordo com o Ministério Público do Pará, nove meninos com idade entre 8 e 14 anos foram sequestrados e castrados entre 1989 e 1993, seis deles morreram. No mesmo período cinco outras crianças desapareceram. A castração fazia parte de um ritual de magia negra patrocinado pela seita Lineamento Linear Superior (LUS), cuja líder seria a paranaense Valentina de Andrade.A polícia do Pará apontou como autores dos sequestros, mutilações e mortes Amailton Madeira Gomes, filho de um empresário de Altamira; Valentina Andrade; o ex-policial militar Carlos Alberto dos Santos Lima; e os médicos Césio Flávio Caldas Brandão e Anísio Ferreira de Souza. Em 2003, o jornalista Orlando do Carmo Arantes, então repórter do POPULAR descobriu que o médico Anísio Ferreira de Souza, então com 62 anos, estava atendendo em uma clínica em Bela de Vista de Goiás. Depois disso, ele desapareceu e foi preso dois anos depois em Imperatriz (MA). Francisco das Chagas, um assassino em série, confessou os crimes de Altamira à Polícia Federal que entrou no caso, com investigações assistidas pela criminóloga e especialista em crimes em série, Ilana Casoy. Ela nunca teve dúvidas de que Chagas falava a verdade, mas o Ministério Público do Pará manteve a convicção de que os médicos estavam envolvidos nos crimes. O caso de Altamira se transformou numa colcha de retalhos jurídica ainda não solucionada totalmente. Os crimes envolvendo os meninos emasculados de Altamira levou o Brasil a ser denunciado na Corte Interamericana de Justiça da Organização dos Estados Americanos (OEA). Relatos de rituais nos bastidores da política Dois outros casos envolvendo magia negra tornaram-se notórios em Goiás, ambos ocorridos em Guapó, a 40 km da capital. No primeiro, ocorrido em setembro de 1990, foi morta Dalva Elias Faleiro, que tinha deficiência mental. Mais tarde, em maio de 1992, um mês após o encontro do corpo de Evandro Ramos Caetano, no Paraná, foi encontrado na cidade goiana o corpo da menina Fernanda Soares Militão, de 12 anos. Ela foi degolada e teve seu sangue recolhido. Seu corpo também tinha sinais de violência sexual e um desenho de uma estrela feito à faca. As investigações apontaram o pai de santo Donizete Martins do Carmo como a pessoa que teria feito a “encomenda”. A menina teria sido surpreendida por Vicente Natal do Nascimento e João Maria Rocha Silva. Após ser morta, o sangue de Fernanda foi levado para a casa de Maria de Lourdes Rocha Silva, mãe de João Maria. Todos foram condenados. Donizete Martins do Carmo, que confessou o crime, suicidou na prisão. Os autos dos dois casos foram juntados ao processo de Michael Mendes a pedido do Ministério Público por envolver rituais satânicos.Todos os casos mencionados na reportagem ocorreram num período em que rituais de magia negra eram muito comentados no Brasil. Fernando Collor de Mello tinha sido eleito presidente da República em 1989 e logo depois de assumir, o irmão, Pedro, acusou seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias de corrupção. Segundo Pedro, PC Farias seria testa-de-ferro em negócios escusos de Fernando Collor. Nas muitas denúncias que se seguiram, Pedro Collor disse que o irmão praticava rituais de magia negra na Casa da Dinda, a residência oficial em Brasília do casal Fernando e Rosane Collor. Fernando Collor e Rosane ficaram casados durante 22 anos, mas em 2012, no meio de uma separação litigiosa, ela concedeu entrevista à TV Globo quando confirmou os rituais satânicos no porão da residência oficial. Em 2014, já assinando como Rosane Malta, ela detalhou tudo no livro Tudo o que Vi e Vivi, que lançou pela editora Leya.IntolerânciaÀ época, os inúmeros relatos que vinculavam crimes hediondos à magia negra implicaram no crescimento de ataques às religiões de matrizes africanas, como candomblé e umbanda, amparadas por lei no Brasil. Em todo o País foram registrados episódios de intimidação, terreiros queimados e pessoas apedrejadas. Os casos de intolerância persistem e levaram à criação, em 2019, do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), iniciativa de um grupo multidisciplinar de especialistas para assessorar e orientar seguidores das religiões afro-brasileiras no que se refere ao exercício de seus direitos.