Publicado no Diário Oficial da União na quarta-feira (12), o Decreto Presidencial 10.935 que muda as regras para a preservação de cavernas, trouxe indignação no meio espeleológico brasileiro. O decreto, que tem as assinaturas do presidente Jair Bolsonaro, da secretária-executiva do Ministério de Minas e Energia, Marisete Fátima Dadald Pereira, e do ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, abre a possibilidade de supressão de cavernas para garantir o surgimento de empreendimentos econômicos. A Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE), que reúne pesquisadores de grutas e cavernas, diz que a decisão é inconstitucional e coloca em risco o patrimônio espeleológico brasileiro.Em nota, a SBE informou que o decreto foi produzido a portas fechadas, sem diálogo com a comunidade espeleológica e que, “claramente mostra a interferência direta dos Ministérios de Estado de Minas e Energia e de Infraestrutura em uma matéria que é de interesse ambiental”. Para a SBE, a interferência “visa à facilitação de licenciamento de obras e atividades potencialmente lesivas ao patrimônio espeleológico nacional e que, geralmente, estão associadas a atividades de alto impacto social”. Um abaixo-assinado online já circula para uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin).A Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros (SBEQ), formada por estudiosos de morcegos, também se manifestou. “Mais uma vez o governo federal se posiciona contra a proteção do mais valioso recurso do Brasil - a sua biodiversidade”, afirmou a entidade no comunicado. A SBEQ explicou que no Brasil, as cavernas em áreas passíveis de licenciamento ambiental até agora passavam por um processo de classificação de relevância e que impactos irreversíveis não eram permitidos naquelas consideradas de máxima relevância, entendimento que foi alterado com o novo decreto.Goiás é o estado com maior número de cavernas do Centro-Oeste brasileiro. Das 1.215 cadastradas na região pela SBE, 843 estão em território goiano espalhadas por 35 municípios. São Domingos, no Nordeste do estado, concentra o maior número, 104, seguido de Niquelândia, com 76. Prefeito de São Domingos, Cleiton Martins (PL), analisa com cuidado o decreto. “O governo deveria ter ouvido os especialistas da área. É preciso buscar um ponto de equilíbrio: preservar o meio ambiente e trazer o desenvolvimento sustentável. Este é um grande desafio.”Criado em 1989, o Parque Estadual de Terra Ronca (Peter) tem uma área aproximada de 57.000 ha. e ocupa parte de São Domingos e Guarani de Goiás. Considerado um dos mais importantes complexos de cavernas da América Latina, o parque atrai visitantes e estudiosos do mundo todo. Os atrativos da região, como rios subterrâneos, cachoeiras e pinturas rupestres, fazem do parque um valioso destino turístico, embora haja muita pressão para o desenvolvimento econômico.A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Semad) já sinalizou que o Peter é um dos três parques estaduais que serão administrados por empresas privadas. Estudos englobam dados não apenas relativos à exploração turística e à preservação ambiental, mas também à viabilidade de atividades econômicas no entorno do parque. Está em andamento, pela empresa STCP, a elaboração do plano de manejo espeleológico do Peter.O Ministério do Meio Ambiente diz que o objetivo do governo é trazer segurança jurídica para ambientes favoráveis ao desenvolvimento econômico, mantendo a preservação do meio ambiente. Pelo novo decreto, os responsáveis pela área terão de criar um plano de compensação ambiental em outra área de mesma qualificação ambiental. Os empreendimentos terão de passar pelo aval do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).No ano passado, a Semad lançou a campanha “Terra Ronca: no coração do Brasil profundo existe um patrimônio da humanidade” o parque ser reconhecido Patrimônio Natural e Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Procurada, a pasta não falou sobre o decreto presidencial.Natureza dá respostas às agressões, diz especialistaO Decreto 10.935/22 certamente estará no centro dos debates do 36º Congresso Brasileiro de Espeleologia marcado para o período de 20 a 23 de abril, em Brasília (DF). Espeleóloga há mais de 30 anos e presidente da Comissão Científica do evento, a professora Renata Santos Momoli, da Universidade Federal de Goiás (UFG), manifestou nesta sexta-feira (14) a preocupação dos especialistas com a decisão governamental.“Esse decreto é um absurdo. Ele derruba a proteção e corremos o risco de perder cavernas extremamente importantes para o ecossistema, tanto no contexto geológico quanto hidrológico. As cavernas não são apenas buracos onde correm água e às vezes animais se abrigam. Elas fazem parte de um sistema de armazenamento hídrico muito importante. O decreto abre precedente para destruir o patrimônio e mexer com o balanço hidrológico. A água é rara e cara. As formas de avaliação não condizem com estudos científicos. Mais uma vez estão, literalmente, ‘passando a boiada’”, afirma a espeleóloga. Engenheira agrônoma e especialista em solos, Renata Mololi explica que cedo ou tarde, a natureza responde a essas agressões. “Na região de São Desidério (BA), que faz fronteira com o Nordeste goiano, projetos rodoviários foram alterados pela presença de cavernas. Se não há essa proteção, há possibilidade de abrir uma rodovia sobre elas. Mas isso tem um custo ambiental e de segurança. Se a ciência aponta que aquele local não é ideal, estaremos sujeitos cada vez mais a eventos como o que estamos assistindo nas cidades mineiras de Capitólio (MG) e Ouro Preto (MG). Leigos associam esses desmoronamentos às chuvas, mas são interferências humanas.”A professora da UFG faz alusão ainda às grandes erosões que têm surgido no Cerrado, em áreas de expansão agrícola.-Imagem (1.2387250)