Em Trindade, município da região metropolitana de Goiânia, vive a quinta maior comunidade cigana do país, segundo pesquisadores do assunto. O ramo, da etnia calon, atravessa dias de angústia depois que um de seus membros morreu em decorrência da Covid-19. O número de infectados aumentou muito entre o grupo, que vem denunciando dificuldade de acesso a testes públicos em decorrência de preconceito. A Secretaria Municipal de Saúde diz que desde o início da pandemia tem prestado assistência aos ciganos e ampliou a atenção após uma festa ocorrida em junho, que teria contribuído para a disseminação do coronavírus (Sars-CoV-2) na comunidade.Nesta terça-feira (21), havia, segundo Júlio César, um dos representantes da comunidade cigana, 55 pessoas com resultado positivo para Covid-19 e em torno de 100 casos suspeitos. Em Trindade, cerca de 1.200 ciganos, não somando as crianças, vivem na Vilas Pai Eterno e Samarah, e outros poucos espalhados pelos setores Serra Dourada e Vila Maria. No dia 15 deste mês morreu Eurípedes do Socorro Soares, de 44 anos, que ficou pouco mais de uma semana internado, mas não resistiu às complicações da Covid-19. Outros integrantes do grupo chegaram a ir para o hospital e até a ocupar leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Todo esse cenário levou muitos da etnia a procurar outras cidades temendo o contágio.Foi o que ocorreu com Simone Soares da Costa, de 44 anos, prima de Eurípedes. Ela, o marido Erli Gomes da Silva, de 46, e os filhos crianças, um deles especial, buscaram uma chácara perto de Iporá. “Meu filho tem baixa imunidade, fiquei com medo. Choro o dia inteiro preocupada com a situação lá.” Simone conta que vários membros de sua família precisaram ser internados, entre eles sua mãe. Para ela, a grande contaminação da comunidade cigana ocorreu porque eles são unidos e tudo o que fazem é reunindo pessoas. Júlio César disse que por duas vezes tentou explicar essa situação cultural às autoridades de saúde, mas não foi ouvido. Mesmo enraizados na cidade desde os tempos do Barro Preto, o aglomerado urbano que deu origem a Trindade, os ciganos calon não perderam hábitos da etnia, entre eles as cerimônias festivas.Simone e o marido Erli Gomes da Silva, de 46, são muito conhecidos entre os ciganos de Trindade. Ao lado de outros ativistas mobilizaram estudiosos e autoridades na tentativa de amenizar a situação. “A maioria das pessoas não tem recursos, por isso, além de passar necessidades, não pode fazer testes por conta própria. “Nós fomos à prefeitura pedir cestas básicas, produtos de higiene e solicitar que a comunidade fosse testada”, conta Erli. Segundo ela, foram enviados cerca de 80 testes, número insuficiente para atender aproximadamente 250 famílias.Desde 2009 o pastor Lázaro de Oliveira, da Igreja Presbiteriana, trabalha com os ciganos, oferecendo um projeto esportivo e uma escola, por considerar que comunidade é invisível às autoridades. Ele confirma que reforçou o grupo que esteve na prefeitura pedindo orientação e ajuda nesta pandemia. “Pedimos cestas básicas porque quanto mais a pandemia avança, mais há necessidade. Também solicitamos exames, mas eles testaram apenas duas pessoas e desapareceram.” Júlio César conta que um deficiente começou a apresentar sintomas e eles conseguiram que ele fosse testado pela Secretaria de Saúde, mas outros seis membros da família que tiveram Covid-19 descobriram porque contaram com a ajuda de pessoas da comunidade para fazer o teste.Contando com a ajuda de ativistas e pesquisadores da cultura cigana, a comunidade de Trindade conseguiu mobilizar a secretária nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), Sandra Terena, que esteve em Trindade na semana passada. A representante do governo federal foi conversar com a secretária Branca Ferreira sobre as ações em andamento para conter o avanço do coronavírus no grupo étnico. “Pelo que eu soube até agora nada aconteceu, a prefeitura de Trindade continua muito omissa, assim como o governo federal, e a comunidade está apavorada. E o pior é que, aqueles com melhores condições, estão saindo da cidade podendo contaminar outras pessoas em locais diferentes”, diz Aluízio Azevedo, o Cigano Kalon.Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/ICICT), da Fundação Instituto Oswaldo Cruz, Aluízio Azevedo conhece como poucos a realidade de seu povo no Brasil. “É preciso testar todo mundo”, enfatiza. Ele conta que durante a reunião com Sandra Terena foi dito que não estavam garantidos testes para todos. Ele diz que isso é ruim, exatamente pelo modo de vida dos ciganos que estão sempre juntos. Para Júlio César a prefeitura de Trindade deveria ter feito um trabalho maior de divulgação na comunidade cigana, explicando os riscos de se contrair a doença em razão das reuniões em família. Muita gente de um mesmo ramo familiar se contaminou. Memorial cigano O Instituto Cigano do Brasil (ICB), com sede no Ceará, decidiu fazer um Memorial Virtual das pessoas da etnia que estão perdendo a vida para a Covid-19. O presidente da instituição, o calon Rogério Ribeiro, disse que a homenagem objetiva “tirar da invisibilidade cidadãos que têm família, história e deixaram um legado após a morte”. Pelos números do ICB, até esta terça-feira (21), 23 ciganos morreram no Brasil em decorrência do coronavírus (Sars-Cov-2), 19 deles do grupo calon e 4 do grupo Rom. Em Goiás há registro de óbito de três homens calon desde o início da pandemia.O Memorial das Vítimas de Covid do Povo Cigano do Brasil já está ativo no Facebook. Para participar, familiares ou amigos das vítimas deverão acessar a página e informar nome, idade e uma pequena descrição sobre a pessoa homenageada. Prefeitura de Trindade diz que tem dado apoioA Secretaria Municipal de Saúde de Trindade disse que desde o início da pandemia tem oferecido assistência necessária a todos os moradores, incluindo a “comunidade cigana que é parte integrante da população trindadense”. Conforme a pasta, além do suporte assistencial das unidades de saúde, a etnia tem recebido atenção especial da secretaria “desde junho. quando houve um casamento com mais de 200 convidados, conforme citado pelos próprios”. Nessa festa, de acordo com a pasta, havia uma pessoa com Covid-19 e outras surgiram com sintomas. “Como a vivência em união é uma característica na comunidade cigana, esse número vem aumentando”, diz a nota da Secretaria de Saúde de Trindade. A pasta garante que, para conter o aumento de casos, tem feito o acompanhamento de perto de todos os ciganos diagnosticados com Covid-19 e de todos aqueles buscaram atendimento nas unidades básicas de saúde do município apresentando sintomas. O acompanhamento, diz a nota enviada ao POPULAR, se estende a todos que foram “listados como confirmados e/ou suspeitos por representantes da própria comunidade”.A secretaria informa que a maior parte dos ciganos apresenta sintomas leves, mas por causa do contato diário com pessoas positivadas ou sintomáticas, gostaria que fosse disponibilizado testagem em massa, até mesmo de pessoas sem sintomas. O órgão ressalta que tem realizado testes na comunidade cigana, até mesmo em domicílio, mas a prioridade é a avaliação médica e o tratamento medicamentoso de imediato. “Testagem é para fins diagnósticos e deve ser realizada conforme solicitação médica, mediante avaliação e seguindo os critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde”, diz a nota do órgão.Aos representantes dos ciganos, a pasta informou que “o pessoal dos Direitos Humanos de Brasília” ficou satisfeito com monitoramento voltado à comunidade étnica, “sendo assim estamos dando continuidade ao acompanhamento”. O POPULAR tentou ouvir Sandra Terena, mas não obteve sucesso.