O número de mulheres que registraram ocorrências por violência doméstica caiu em Goiás desde os primeiros decretos do governo estadual impondo regras de distanciamento social, publicados a partir de 19 de março. Dados da Secretaria de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) apontam que na última quinzena do mês passado houve redução de 51,92% de registros de ameaças e 25,92% em lesões corporais. Segundo o órgão, o número de estupros caiu 41,18%. A comparação é feita com o mesmo período do ano anterior.Em Goiânia, a situação seguiu o mesmo ritmo. A 1ª Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam) contabilizou na última quinzena de março 85 ocorrências. Já no ano anterior, este número foi de 188 registros. No entanto, o número de casos reais que se referem à violência doméstica - tanto no Estado, como na capital - podem estar subnotificados. É o que apontam delegadas responsáveis que conversaram com o POPULAR e mulheres à frente de ações que apoiam as vítimas.As delegacias em Goiás trabalham desde o dia 17 de março com o atendimento reduzido, após decreto para conter o avanço do novo coronavírus (Covid-19). Isso segundo portaria editada pela Polícia Civil. Na lista de crimes que podem ser registrados pela internet, divulgada pela pasta e que consta no próprio site, não há nenhum que se refira à violência doméstica.A delegada titular da 1ª Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), Paula Meoti, avalia que ainda é cedo para um levantamento real dos casos de vítimas de violência doméstica, já que o país está em meio à pandemia. “Só quando tudo voltar ao normal, após decreto do governador, que saberemos se houve muitos relatos de fato ocorridos neste período, mas que não foram contabilizados e não foram registrados”, diz. “Futuramente que dará para olhar para este período e dizer efetivamente se nós tivemos redução, mantivemos na média ou aumento do número de vítimas”, acrescenta a titular da 1ª Deam.Na 2 ª Deam de Goiânia, a situação não é diferente. De acordo com a delegada titular Cássia Sertão, não houve um aumento no número de denúncias de mulheres vítimas de violência doméstica na delegacia que é responsável. Somente os casos de prisão em flagrante feitas pelo local teve crescimento. No entanto, para ela, devido ao isolamento social as vítimas tendem há passar todo o tempo com seus agressores, e não saem para denunciar.“Pela nossa experiência este quantitativo deve estar subnotificado. As vítimas ficam com medo. Elas já sofrem tanto, e agora devem estar ainda mais inseguras”, afirma. “É fato que no mundo todo cresceu. E na verdade, a subnotificação do número de vítimas (de violência doméstica), mesmo antes da quarentena, sempre foi grande. Imagine agora, diante de tantos problemas e incertezas”, acrescenta a delegada.INTERIORNa Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Aparecida de Goiânia, a delegada titular, Ana Paula de Paula Machado, conta que também percebeu a redução na procura de mulheres para denunciar casos de violência doméstica.“Faço esta observação me baseando nas vítimas que tem procurado esta delegacia”, destaca. Por conta do decreto estadual, ela ressalta que acabam chegando apenas os casos mais graves, que, por exemplo, necessitem de medidas protetivas.“Pode ser que após a quarentena as vítimas saiam e procurem as delegacias. Ainda não dá para sentir este impacto até então”, avalia. Ana Paula Machado conta que faz parte, inclusive, de um grupo de delegadas que inclui até mesmo profissionais de outros Estados.“Embora vimos que em alguns lugares a violência aumentou já nitidamente, por aqui não conseguimos perceber ainda, até porque com o isolamento das vítimas e as denúncias tendo que ser feitas pessoalmente pode ser que somente após esta fase saibamos de fato”, conclui Ana Paula.A delegada Renata Vieira, que atua na delegacia de Trindade conta que no município os números de vítimas que registraram ocorrências também não aumentaram.“Pensei no início da quarentena que iriam crescer as notificações, mas não ocorreu desta forma”, relata. Ela destaca ainda que a violência domestica envolve na maioria das vezes o consumo de álcool.“Como só estamos nos concentrando nos crimes mais graves, há um filtro, e muitas coisas que entravam antes, agora estão ficando de fora em meio a este momento da pandemia”, afirma a delegada.Casa de apoioO Centro de Valorização da Mulher (Cevam), instituição privada que atende mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, está com as portas fechadas durante o período de isolamento social por conta do novo coronavírus (Coiv-19). Diante deste cenário, a diretora do local, Carla Monteiro, explica que as ações continuam da forma como conseguem atender, já que no espaço físico da organização não é possível abrigar ninguém. “As mulheres que chegam, nós colocamos na casa de amigas delas, ou parentes. Tentamos fazer o que podemos. Tudo isso é cadastrado. Mas em Goiânia não está tendo. Na capital está tendo casos mais difíceis de alojarmos”, destaca.Carla conta ainda que as mulheres que chegam recebem também cesta básica e são monitoradas. “Ligamos para saber se está tudo bem. Elas têm medidas protetivas e buscamos saber se está tudo em ordem”, diz. “Tem um caso recente que levei a mulher e os três filhos dela para uma parente que fica no interior do Estado”, exemplifica.“Tenho recebido inúmeras ligações dos Ministérios Públicos do interior de Goiás”, destaca. “Pela minha experiência os casos de violência doméstica devem ter aumentado. Isso porque, nessa quarentena elas ficam mais vulneráveis a agressões por exemplo.Normalmente a agressão acontece à noite e fim de semana. Já durante o isolamento, tende a ocorrer com maior abrangência pelo contato 24 horas de forma compulsória”, acrescenta. Carla frisa que no Estado há mais medidas punitivas do que políticas educacionais. “Mulheres e crianças são vistas como objetos de posse do homem”, afirma. Diante de dados em outros países e até mesmo estados brasileiros que já apresentaram uma taxa de crescimento de ocorrências de vítimas de violência domestica, Carla Monteira aponta o que pode justificar em Goiás esta possível subnotificação. “Nosso Estado é iminente agrário, com um meio de produção formado em sua maioria ainda por homens. Pela estrutura cultural de posse isto pode afetar o número de mulheres que conseguem ir até as delegacias denunciarem”, aponta.Procura maiorEm meio à pandemia, onde as vítimas de violência doméstica com medidas protetivas têm menos opções onde ficar, a Casa Abrigo Sempre Viva, tem buscado reforçar o acolhimento às mulheres que estão nesta situação. A titular da Secretária Municipal de Políticas para as Mulheres, Ana Carolina Almeida, relata que a procura por auxílio neste momento está sendo considerada grande.“Buscamos ajudar abrigando temporariamente estas mulheres, e também os filhos delas. Temos leitos para elas, oferecemos atividades e cursos”, relata. A secretária explica que as mulheres que passam pelo local são aquelas que estão correndo risco de vida. Por isso a localização da moradia é sigilosa. “Elas podem ficar na casa por até três meses, mas geralmente saem antes disso. Buscamos neste período um lugar para que possam viver. Enquanto isso, elas não ficam com o celular por questão de segurança, até mesmo em manter o lugar sem ser localizado”, esclarece.Umas das pessoas que procurou ajuda e está abrigada hoje na casa Sempre Viva é R. de 28 anos. Ela conta que viveu com o agressor por 14 anos e sofreu diversos tipos de violência. “Eu estava casada de papel passado, e por causa dos meus filhos principalmente não conseguia sair daquela situação”, relata. “Hoje vejo que a culpa não é minha. Estou recebendo ajuda psicológica aqui. Mas antes eu tinha nojo de mim, de aceitar aquilo e de não conseguir sair”, lembra emocionada.