Atualizada em 17.07 às 10h31.Goiás já perdeu mais de 20 mil vidas na batalha contra a Covid-19. É como se toda a população de Silvânia ou de Abadiânia sumisse do mapa de uma hora para a outra. A tragédia, que tem interrompido histórias de vida e ceifado famílias, ocorre diariamente diante dos olhos dos goianos desde março de 2020. A esperança tem sido o avanço da vacinação, uma das formas mais importantes de reverter um curso da tragédia.A marca dos 10 mil mortos pela doença no Estado chegou um ano depois da primeira morte pela doença ter sido registrada em Goiás. Entretanto, o número dobrou apenas quatro meses depois. O pico da segunda onda da Covid-19 no Estado teve influência. Apenas nos meses de março e abril, Goiás saltou de 8 mil para 15 mil mortos. Esses 7 mil mortos representam 35% dos óbitos registrados até agora.O biólogo e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), José Alexandre Diniz Filho, que é membro do grupo de modelagem da instituição que acompanha o avanço da Covid-19 em Goiás, aponta que esse aumento dos óbitos em 2021 era esperado por conta da agressividade maior que a segunda onda da doença teve no Estado. “Chegamos a mil óbitos por semana, enquanto na primeira onda foram pouco mais de 400”, explica.Reportagem do POPULAR publicada no dia 8 deste mês mostrou que 4 a cada 10 mortes registradas no Estado no primeiro semestre foram por Covid-19. José Alexandre Filho alerta para o fato de que neste ano, o número de óbitos caiu em maio e depois voltou a subir e depois caiu de novo no início deste mês. “Entretanto, é preciso lembrar que no pico desta terceira onda tivemos algo próximo de 400 mortes por semana, cenário bem próximo do da primeira onda no Estado”, aponta.VacinaçãoA vacinação em Goiás começou no fim de janeiro deste ano e é realizada d forma mais lenta do que os especialistas recomendam. A expectativa do governo estadual é imunizar toda a população adulta até o fim de setembro com pelo menos a primeira dose. Atualmente, a maioria dos municípios goianos está vacinando pessoas com idade entre 30 e 40 anos.O professor acredita que embora a proporção da população vacinada seja relativamente baixa, já que apenas 38,22% dos goianos tomaram a primeira dose da vacina e apenas 13,11% estão com o esquema vacinal completo, a imunização já está ajudando a conter uma parcela dos óbitos. “Por isso, provavelmente, não tivemos um pico muito alto. Uma parte importante deste efeito é que a prioridade de vacinação cobriu as pessoas mais vulneráveis e mais idosas.”ReduçãoA proporção de pessoas internadas com mais de 60 anos caiu em Goiás depois do início da vacinação. Para se ter ideia, a ocupação de leitos por pessoas com idade entre 60 e 69 anos em Goiás caiu pela metade se comparados os meses de janeiro (22%) e junho (10%). “Entretanto, é preciso lembrar que a quantidade de pessoas internadas ainda é muito alta, na faixa de 1,2 mil pessoas”, avalia José Alexandre. Nesta sexta-feira (16), a taxa de ocupação dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Goiás era de 80,34% e da rede municipal de Goiânia estava na faixa dos 76,11%. Associação auxilia vítimasPensando na dor das 20 mil famílias e nos prejuízos causados às incontáveis pessoas afetadas de alguma maneira pela pandemia, um grupo de goianos decidiu criar uma seccional em Goiás da Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19 (Vida e Justiça Goiás). A associação foi formada recentemente e a intenção é proporcionar uma rede de apoio para quem perdeu pessoas próximas para a doença e também para aquelas que ficaram com sequelas da Covid-19. “Nos solidarizamos com este número absurdo de mortes que tivemos. Não tem como mais ninguém morrer por conta disso”, diz Angela Ferreira, uma das coordenadoras da associação.Angela aponta que a Associação Vida e Justiça está se organizando para prestar apoio psicológico para os familiares da vítima e também apoio jurídico àquelas que precisarem. “A associação tem uma dimensão da memória destas vítimas e também de transformar o luto em luta”, enfatiza. AbrangênciaA coordenadora esclarece ainda que a associação tem como intuito prestar auxílio às pessoas que ficaram com sequelas da Covid-19 ou que foram de alguma maneira afetadas pela pandemia que aumentou, por exemplo, o desemprego. Tem gente que ficou sem trabalho. Tem gente que está passando fome”, explica.Angela esclarece que toda a estrutura jurídica da associação nacional será ofertada para a seccional. “Queremos estender o braço para quem precisa. Não podemos normalizar esta tragédia. São pessoas morrendo de uma doença que já possui vacina”, avalia. A Associação Vida e Justiça está presente no Facebook (vidaejusticago) e no Instagram @vidaejusticago). Para entrar em contato também pode ser acionado o telefone (62) 99837-1369 (WhatsApp).Pedro, o porto seguro dos filhosQuando qualquer um dos cinco filhos de Pedro Dietz, de 71 anos, tinha de tomar alguma decisão importante, eles recorriam direto ao pai. “Ele era um homem inteligente e visionário. Meu porto seguro. Tinha resposta para todas as minhas perguntas”, conta uma das filhas do empresário, Maristela Dietz, de 41 anos. Pedro morreu em decorrência de complicações da Covid-19 em outubro de 2020. Além dos filhos, ele deixou cinco netos. Ele era de Crixás e quando contraiu a doença era um dos candidatos à prefeitura da cidade. Era um homem apaixonado por política. “Meu pai conhecia todo mundo. O jeito dele era esse: passava pelos comércios da cidade conversando e brincando com todo mundo”, diz Maristela.Ela, que é proprietária de um restaurante e está cursando o quarto período de Direito, revela que o pai sempre demonstrou amor por meio dos atos. “Mesmo eu ainda sendo uma estudante, ele falava para todo mundo que eu era advogada. Passava meu telefone e me arrumava clientes. Ele gostava muito de ajudar as pessoas”, lembra.O empresário era evangélico e tinha o costume de estar sempre conversando com os filhos sobre este assunto. “Sempre brincávamos que ele tinha de abrir uma igreja. As vezes ele ligava do nada e perguntava: quantos capítulos tem a Bíblia? Não me esqueço disso”, comenta Maristela com carinho.Ela conta que nos últimos dias do pai, que depois de ter sido internado foi transferido para uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Goiânia, ele conversou muito com uma das irmãs. “Ele sentia que ia morrer. Dizia para ela ‘Beth, eu tô indo’. Ele pediu perdão por várias coisas. É muito doloroso e repentino. Porém, gosto de acreditar que ele foi em paz”, avalia Maristela. Maristela, que morou 15 anos na Inglaterra, voltou para o Brasil há cinco anos. Em meio às lágrimas, ela comenta sobre o quanto é grata por ter tomado esta decisão.“Quando olho para trás não me arrependo. Não existe dinheiro nenhum que pague ter vivido esses últimos anos ao lado do meu pai”, finaliza. Rosângela, a melhor amiga que alguém poderia terA amizade de Juliana Bueno, de 49 anos, e de Rosângela Amorim, da mesma idade, era aquela que só encontramos em filmes: se conheceram ainda na escola e nunca mais se desgrudaram. Mesmo com a vida de ambas tomando caminhos distintos, elas sempre tinham um tempo para fazer uma ligação ou mandar uma mensagem uma para outra. As conversas transitavam desde relacionamentos até a compra de um perfume.Rosângela morreu em março deste ano devido a complicações causadas pela Covid-19. Ela deixou o esposo e um filho de 16 anos. Rosângela só foi internada depois que o marido, que precisou de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), já estava hospitalizado. “Isso mostra muito do jeito dela. Ela era extremamente dedicada e cuidadosa”, conta.Quem cuidou do telefone da amiga enquanto ela estava internada foi Juliana. Depois que ela foi internada foi muito difícil. Ela resistiu muito à ventilação. Tinha muita ansiedade e pânico. Pedia para alguém ficar segurando a mão dela o tempo todo. Por isso, desejo que agora ela fique tranquila”, relata. A assessora jurídica diz que Rosângela, que era nutricionista, era uma mulher vaidosa que adorava cuidar da alimentação e de si mesma. “Ela era uma mulher cheia de ideias, planos e possibilidades para o futuro”, diz. A casa também era uma das paixões de Rosângela. “Ela adorava postar receitas nas redes sociais e tudo dela tinha um bom gosto imenso. Os utensílios de cozinha dela eram lindos”, conta.A última vez que as amigas de 30 anos se encontraram foi marcante: Rosangela saiu de Inhumas, onde morava, para acompanhar a nomeação do pai de Juliana na Academia Goiania de Letras (AGL). “Ela chamava eles de tio e tia. Veio para Goiânia só por isso. Tiramos muitas fotos lindas. É uma memória boa que eu tenho”, lembra. Juliana ainda está se acostumando a não ter mais a amiga por perto. “Um dia eu estava com ela e no outro estava acompanhando o sepultamento dela à distância. Às vezes eu olho alguma coisa e penso: isso é a cara da Rô. Pego no telefone para ligar para ela e só então a ficha cai”, finaliza.A última vez que as amigas de 30 anos se encontraram foi marcante: Rosangela saiu de Inhumas, onde morava, para acompanhar a nomeação do pai de Juliana na Academia Goiania de Letras (AGL). “Ela chamava eles de tio e tia. Veio para Goiânia só por isso. Tiramos muitas fotos lindas. É uma memória boa que eu tenho”, lembra. Juliana ainda está se acostumando a não ter mais a amiga por perto. “Um dia eu estava com ela e no outro estava acompanhando o sepultamento dela à distância. Às vezes eu olho alguma coisa e penso: isso é a cara da Rô. Pego no telefone para ligar para ela e só então a ficha cai”, finaliza.Borges, dono de uma voz inesquecívelBenedito Borges, de 72 anos, era um homem que chamava a atenção: alto, corpulento e dono de uma voz grave. Onde ele, que era conhecido por todos com Borges, chegava, era uma presença forte. “Meu pai tinha um vozeirão e era conversador. Tinha papo com todo mundo”, diz uma das filhas do aposentado, Alessandra Cristalino, de 48 anos.O aposentado morreu em setembro. Ele foi internado depois de cair no banheiro. Assim, descobriu a Covid-19. Depois de 20 dias de hospitalizações, ele não resistiu e morreu deixando quatro filhos e cinco netos. Ele era o irmão caçula de 14 irmãs, que o chamavam carinhosamente de Borginho. “Para completar, ele ainda nasceu dia 8 de maio, no Dia da Mulher. Era o xodó da casa”, conta Alessandra. Uma das maiores paixões de Benedito era cantar. “Ele cantava muito na igreja. Tinha o maior prazer”, diz Alessandra. Quando tinha algum baile beneficente ou festa no condomínio onde morava, ele também arriscava cantar algumas músicas como Na Hora do Adeus, do Marcos Paulo.Alessandra, que é mãe de duas meninas, morou com o pai durante um tempo e tem boas memórias da relação que ele tinha com a filha mais velha dela. “Ele sentava com ela no sofá e assistia aos desenhos que ela gostava. Ele adorava crianças. Adotava todas as do condomínio em que morava”, lembra.Alessandra diz que o pai gostava muito de ficar com a família, especialmente com as irmãs. Ela, que já perdeu a mãe, luta para manter as lembranças do pai vivas. “Ele era uma pessoa muito boa. Gostava de ajudar todo mundo. Foi um pai maravilhoso para todos nós”, enfatiza.Augusto, o grande companheiro da mãeO contador Augusto Sousa, de 41 anos, era o filho mais velho da aposentada Mônica Sousa, de 60 anos. “Ele era meu melhor amigo. Era aquela pessoa que eu podia falar sobre todos os meus problemas, deitar no colo e chorar. Ele sempre me ouvia e me dava um abraço. Isso, eu nunca mais vou ter”, conta. Augusto, que era diabético, morreu em maio. Ele deixou para trás uma esposa, três irmãos e a mãe, da qual era extremamente próximo. Todos os dias ele ligava para Mônica para saber como ela estava. “Ele também sempre trazia uma coisinha para mim. Chegava com um queijo falando ‘Lembrei da senhora. Sei que gosta”, relata. Mônica conta que o filho, que sempre foi mais tímido, era um homem trabalhador e determinado. Trabalhou como maqueiro do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Goiás (UFG) por anos. Depois, conseguiu se formar e foi atuar como contador. “Ele nunca reclamava de nada. Eu sempre perguntava e ele dizia que estava tudo bem. Porém, eu sou mãe. Percebia pela respiração dele.”A mãe de Augusto afirma que ele era um homem muito preocupado com as pessoas. Mesmo debilitado pela diabetes nos últimos dias de vida, estava sempre perguntando sobre como os irmãos mais novos estavam. “Às vezes, olho para o lado e não vejo ele. Depois, olho para o céu e fico me perguntando onde está meu filho”, questiona Mônica em meio às lágrimas. Emocionada, ela diz que não consegue entender o desfecho do filho. “Ele tinha tanto para viver ainda. Não me esqueço de quando reconheci o corpo dele. Estava todo sujo. Cheio de secreção e dentro de um saco preto. A sensação que fica é a de que quando a vida acaba, acaba também o valor da pessoa”, reflete.Paulo, um homem apaixonado pela roçaA rotina de Paulo Lagares, de 64 anos, era praticamente a mesma todos os dias: ele acordava cedo, por volta de 6 horas, e ia para a fazenda que possui na zona rural de Crixás. “Ele adorava ir para lá. Costumava dizer ‘isso aqui tudo é meu’”, conta um dos filhos do aposentado, Paulo Lagares Júnior, de 36 anos.No pedaço de terra que possuía, ele fazia de tudo: cuidava do gado e de outros animais, fazia queijos, organizava a casa. “Quando não estava na chácara, ele estava na cidade. Ele gostava de beber uma cervejinha e brincar com todo mundo. Bastava alguém estar fazendo alguma comida, que ele ia lá e roubava um pedacinho de frango”, lembra. Paulo morreu em abril deste ano devido a complicações causadas pela Covid-19. Ano passado, o único neto de Paulo foi morar um tempo com ele. Júnior acredita que isso foi um presente para o pai. “Ele vai fazer três anos e era agarrado com meu pai. Iam para o supermercado juntos e ele vivia no colo do vovô. Meu pai demonstrava o carinho assim”, diz Júnior.Paulo deixou para trás a esposa e três filhos. Júnior afirma que ele tinha medo de pegar a doença e morrer. Estava ansioso para se vacinar. Morreu cerca de 20 dias antes disso acontecer. A sensação que fica é a de estar de frente para uma porta, mas não conseguir abri-la”, comenta Júnior.O filho, que é enfermeiro, conta que lidar com o fato de que o pai não conseguiu se vacinar é mais difícil sendo profissional da saúde. “A sensação é de impotência total. Sei de tanta coisa, conheço tanta gente, mas isso não adiantou nada. Eu já estava protegido e ele não. A minha vontade era de ir lá vacinar ele. Infelizmente, ele não conseguiu esperar.”Luizão, a alegria da festaNenhuma reunião de família era boa de verdade se Luiz Carlos Soares, de 60 anos, não estivesse presente. Dono de uma personalidade descontraída e sempre pronto para contar uma piada, ele era a alegria da festa. “Sabe o tio da piadinha do ‘pavê’? Era ele”, conta uma das sobrinhas de Luiz Carlos, Thaís Garcez, de 28 anos.Luiz, que era dono de uma loteria, morreu de Covid-19 em maio deste ano. Ele deixou dois filhos e uma esposa com a qual ele era muito cuidadoso. “Ele era o chefe da casa. Fazia tudo por ela”, diz Thaís. O cuidado de Luiz, que era chamado de Luizão, se repetia com o restante da família. “Ele me ajudou a planejar meu casamento e a minha mãe a comprar a casa dela”, conta Thaís.Nas horas vagas, Luiz adorava pescar. “Era um bom contador de histórias”, relata a sobrinha. Com 12 irmãos, Luiz era o responsável pelos churrascos de família e se destaca pelo jeito alegre e espontâneo. “Era sempre o primeiro a cochilar. Encostava na cadeira e dormia sentado”, lembra com carinho a sobrinha.Thaís afirma que a marca registrada do tio eram seus mirabolantes presentes de amigo secreto. “Ele já me deu até uma caixa de sapato com papelão e uma furadeira dentro antes de dar o presente de verdade. Nem sei como vai ser o primeiro Natal sem a presença dele. O tio Luiz era quem juntava a família e fazia nossa alegria”, conta.-Imagem (1.2285774)-Imagem (1.2285779)-Imagem (1.2285783)-Imagem (1.2285784)-Imagem (1.2285798)