Criado no mês passado pelo governo federal, o Comitê Interministerial de Doenças Raras significa esperança para uma parcela da população que tem lutando muito em busca de políticas públicas capazes de garantir sobrevivência ou qualidade de vida. Porém, a ausência no grupo de representantes da sociedade civil que estão na linha de frente no enfrentamento dessas enfermidades, trouxe dúvidas sobre a tomada de decisões reivindicadas e aguardadas há anos por 13 milhões de brasileiros que vivem sob o manto da invisibilidade.Pelo decreto presidencial publicado no Diário Oficial da União, o Comitê Interministerial de Doenças Raras vai funcionar no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos até 1º de janeiro de 2027. O órgão, consultivo, de estudos e de articulação, deve estimular o desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais para pessoas com doenças raras, o intercâmbio entre administração pública e instituições de pesquisa e a atuação em rede de centros especializados e hospitais de referência na rede pública.O comitê deverá apresentar uma proposta de definição para doenças raras a ser adotada em âmbito nacional e formular estratégias para coleta, processamento, sistematização e disseminação de informações sobre doenças raras. Sob a coordenação do ministério comandado por Damares Alves, o comitê terá representantes da Casa Civil, do Ministério da Economia, do Ministério da Cidadania, do Ministério da Saúde, do Ministério da Educação e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.Pelo decreto, os integrantes do comitê deverão se reunir a cada três meses e convidar membros da comunidade acadêmica, especialistas e representantes de entidades para participar de reuniões, mas esses não terão direito a voto. A divulgação das discussões em andamento também ficam proibidas, sem a prévia anuência do coordenador. “É muito difícil saber qual é o objetivo deste comitê se nem um debate poderá ter com as pessoas interessadas. Não há participação de nenhuma instituição representativa”, afirma a contadora Pollianna Alves Campos, da Associação Goiana de Apoio ao Fibrocístico (Agafibro), que defende pacientes com fibrose cística, no rol de doenças raras.Pollianna, mãe de um filho de 19 anos com fibrose cística, enfatiza que iniciativas governamentais são bem-vindas “porque os raros existem e precisam ser vistos”, mas que ainda não consegue ter uma ideia do que virá a partir da criação do comitê anunciado na semana passada. “É tudo muito difícil, desde a aceitação pela própria sociedade até nossas lutas judiciais para conseguir medicamentos.” Faz coro a ela a presidente da Associação Goiana de Esclerose Múltipla (AGEM) e conselheira da Federação Brasileira de Doenças Raras Eduarda Assis de Albuquerque Arantes. “É um grande passo, mas temos ressalvas porque não há representatividade dos raros. Que este comitê venha para agregar, divulgar e ancorar nossas reivindicações.”ObstáculosNão se sabe ao certo o número de doenças raras existentes, mas em todo o mundo já foram catalogadas entre 6 mil a 8 mil tipos. Estima-se que 80% dessas enfermidades são de causa genética e 20% de causas ambientais, infecciosas, ambientais, etc. É considerada uma doença rara aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos. No Brasil há, de acordo com o Ministério da Saúde, 13 milhões de pessoas com alguma das doenças raras já catalogadas, 75% com manifestações desde a infância.São muitos os obstáculos enfrentados por essa camada da população, desde o diagnóstico até a dificuldade de obtenção de tratamento. Desde 2014 o Brasil possui uma política unificada de assistência a pacientes de doenças raras, com mais acesso a centros hospitalares e maior cobertura do SUS. Mas, com frequência, é preciso recorrer à Justiça para garantir os medicamentos órfãos, como são conhecidos os remédios para doenças raras.Se, por um lado, os medicamentos demandam pesquisas complexas, por outro o número de pacientes beneficiados não é tão grande, o que faz com que o custo seja muito alto. Grande parte dos medicamentos órfãos não é oferecida pelo governo porque a legislação determina que o critério de custo-efetividade seja levado em conta antes da adoção pelo SUS. Entre outras ações, espera-se que o comitê, crie mecanismos diferenciados de registros dos medicamentos órfãos para acelerar a entrada e comercialização.Bandeira começa a ter visibilidadeA bandeira das doenças raras foi levantada no atual governo por Michelle Bolsonaro em sua primeira viagem oficial em 2019. Na cidade de Campina Grande (PB) ela conheceu o jovem Leryston Matheus, de 21 anos, que tem epidermólise bolhosa, doença rara que deixa marcas na pele. Depois, numa sessão no Congresso Nacional para lembrar a data dedicada a esses doentes, a primeira-dama do País afirmou que três eixos fundamentais são decisivos para abordar a questão: o diagnóstico precoce, o acesso a tratamento continuado e a reabilitação.Na quarta-feira (9), Michelle Bolsonaro recebeu no Palácio da Alvorada um grupo de portadores de nanismo de Goiás levado pelo Instituto Nacional de Nanismo que tem à frente a empresária Juliana Yamin. O Instituto nasceu em setembro deste ano a partir do movimento Somos Todos Gigantes, idealizado por Juliana e o marido Marlos Nogueira para combater o preconceito contra pessoas anãs. O casal é pai de Gabriel, de 14 anos, que desenvolveu nanismo, doença considerada rara pelo Ministério da Saúde. “Comemoramos a criação do comitê porque até agora éramos invisíveis. Esperamos que ele discuta e dê celeridade às ações. É um avanço para todos nós”, afirma Juliana.Para Juliana, entretanto, a visibilidade obtida pelo Instituto Nacional de Nanismo durante a visita à sede do governo federal foi uma grande conquista. “Estamos num momento de desconstruir a mentalidade e as questões culturais que ainda perduram envolvendo o nanismo, como a piada e o preconceito. Ninguém ri de um cadeirante, mas o anão é a piada pronta. Ter nanismo não é só ter centímetros a menos, mas uma condição de saúde complicada, como problemas na coluna, nas articulações e artroses precoces.” VisãoPresidente da Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso, Gleice Machado questiona a exclusão do comitê das principais entidades civis brasileiras que estão na linha de frente das doenças raras. “Quando a Michelle Bolsonaro fez a manifestação apoiando as raras, nós oficiamos o governo sobre nossa história e até hoje não obtivemos resposta. Tomara que eles tenham visão e façam valer tudo o que a gente espera em termos de política pública.” Em 2019, SUS passou a ofertar novos tratamentos para dez diferentes tipos de doenças raras; publicou oito Protocolos Clínicos de Diretrizes Terapêuticas (PCDT), documentos que uniformizam o atendimento, assistência, monitoramento e tratamento para as doenças raras; e habilitou nove Serviços de Referência voltados para essa população no País, mas para Gleice Machado há muito para caminhar. “Em Goiás o Hospital Alberto Rassi (HGG) é um centro de referência para xeroderma pigmentoso, mas 2020 foi um ano perdido por causa da Covid-19. Perdemos tudo o que conquistamos e no restante do Brasil os pacientes continuam jogados, batendo de porta em porta.Segundo a direção do HGG, a unidade que é vinculada à Secretaria Estadual de Saúde (SES), conta desde 2017 com o Serviço de Atenção Ambulatorial Hospitalar para portadores de doenças raras, atendendo pacientes com xeroderma pigmentoso e miopatias idiopáticas. Em quatro anos, de acordo com o HGG, foram realizados 1.755 atendimentos. “O hospital está ainda em processo de habilitação junto ao Ministério da Saúde para se tornar um centro de referência nas duas doenças”, explica a unidade em nota. Eduarda Assis de Albuquerque, da Federação Brasileira de Doenças Raras enfatiza que pessoas com doenças raras sofrem muito, desde a dificuldade de diagnóstico até o tratamento. “A judicialização é muito alta. Muitas doenças não possuem protocolo o que dificulta a aquisição de medicamentos. Já fizemos vigília na porta Supremo Tribunal Federal para conseguir a liberação de remédios. Outro problema é o acesso ao tratamento. A demora para um paciente entrar na regulação do SUS pode chegar a sete meses.”