Era para ser mais um dia de intensa dedicação aos estudos. Nathalia Araújo Zucatelli, 18 anos, caminhava obstinada por um sonho: tornar-se médica. É possível que ao percorrer a Rua T-25, no Setor Marista, pouco antes das 22 horas e após longo tempo de estudo, pensasse na tão sonhada vaga. É possível ainda que andasse com a mesma determinação que a fizera escolher Goiânia pela reputação de altos índices de aprovação. Mas a mesma cidade que deveria ter acolhido seu sonho, o levou ao fim. Foram-se planos, foram-se desejos de uma vida melhor, foram-se expectativas de uma família. E o tiro que alcançou Nathalia pelo braço esquerdo e foi direto ao coração não atingiu somente uma vida inocente, carregada de futuro, recheada de vontade de florescer mais. Atingiu também o orgulho de um povo hospitaleiro, que enche a boca para dizer “pode vir, aqui a gente cuida de você”. Desculpe-nos, Nathalia. Falhamos desta vez. Muito. Talvez pudéssemos explicar a Nathalia que fatalidades acontecem, mas nada justificaria a frequência e quase previsibilidade com que têm ocorrido. Precisaríamos ser sinceros e lhe dizer que não foi a primeira e única vez. Que, infelizmente, seu destino se uniu ao de tantas outras vidas, iniciadas aqui ou fora daqui mas para cá vieram apostar. Todas também cheias de sonhos interrompidos. Ou até a daquelas que muito provavelmente tenham desistido de sonhos e por isso se tornaram estatística, principalmente na periferia.Se não quiséssemos ser honestos, poderíamos lhe ocultar outros 476 sonhos calados por latrocínio nos últimos anos. Como os do técnico em enfermagem Delerizon Oliveiro, 34 anos, que morreu na frente do filho João Enzo, de 6, alvejado em assalto no Parque Trindade, em Aparecida de Goiânia. Ou os da estudante Wanessa dos Santos, 19, que se foi assim como ela, durante assalto também após o cursinho, no Centro da capital. Ou até os de Oscar Charife Abrão, um policial que teria mais condições de defesa e mesmo assim também foi vítima.Foram somente três semanas vivendo o início de um sonho. De objetivo vivido com uma independência surpreendente para a idade. Vindo de uma garota que sabia o que queria, pesquisou, articulou e até negociou um aluguel para fazer o que tanta gente neste País deseja, mas às vezes não consegue: estudar por um futuro melhor.Não deu tempo de lhe explicar e quem sabe lhe diminuir a inocência de que a bela Goiânia já não pode lhe garantir despreocupação. Que o medo espreita cada vez mais em cada sinal fechado, cada passo à próxima esquina e até cada abertura do portão de casa para sair. Não deu tempo de lhe mostrar que a vida nova que ela estava construindo e que tanto queria que a família conhecesse talvez não já fosse tão livre como um dia já foi.Foi rápido demais. Nem ao menos foi possível criar intimidade para lhe chamar de Zuca, como as amigas mais chegadas do futebol do tempos de sua natal Ji-Paraná. Ou de lhe convidar para uma pamonhada, comer arroz com pequi, jogar bola no terreno ou na quadra e até brincar que seria difícil o páreo por uma vaga em Medicina. Por aqui, muitos jovens nascidos ou recém-chegados são tão obstinados em sonhos como o seu.Foi-se a chance de mostrar à garota da longínqua Ji-Parana que Goiânia também poderia lhe oferecer tantas outras chances. Talvez até para a Educação Física, outro curso sobre o qual pensou. Como a família de Nathalia, também nós, goianos de nascimento ou por escolha, entramos em luto. E sentimos por já não conseguir garantir hospitalidade e segurança mínima para que sonhos tenham caminhos desimpedidos. Desculpe-nos, Nathalia. Não conseguimos garantir a continuidade de seus pensamentos na última caminhada na noite de segunda-feira. Nisto continuamos falhando. Muito.