Sentada em um papelão numa área coberta de um supermercado, Aline é invisível aos olhos da maioria das pessoas que entram e saem com suas compras. Boa parte do tempo ela também fica alheia ao movimento, entretida com a leitura de algum livro. No momento, está lendo Stalin, os Nazistas e o Ocidente, do historiador britânico Laurence Ress, o sétimo livro sobre nazismo que está lendo. “Cada um fala de um campo diferente da guerra que influenciou muito todo o mundo”, justifica de forma simples seu apreço pelo tema. Aline mora na rua e é usuária de crack. Saiu da casa da mãe aos 17 anos para morar com uma prima e está em situação de rua “direto” há cerca de 8 anos. Tem 31. Como andarilha, já esteve no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas e Paraná e teve um tempo que usava muita droga. Hoje diz que faz uso de crack de forma mais controlada, só quando sente os efeitos da abstinência. Mas admite que não consegue deixar o vício sem ajuda. Ela esteve internada uma única vez por 36 horas, mas conta que se rebelou porque não recebeu remédios para amenizar os efeitos da abstinência e foi expulsa da clínica. “Pulei o muro pra dentro, mas tive que sair de novo”, lembra. Os livros entraram na vida de Aline quando ela tinha 12 anos e tinha acesso à biblioteca da escola. Ela se lembra do primeiro livro que leu, As Brumas de Avalon, (de Marion Zimmer Bradley), “mas estou aprimorando meu gosto”, afirma. Aline não foi levada aos livros, ela os descobriu porque “adora as letras”. Já leu todo o Dicionário Aurélio e nem mesmo as bulas de remédios fogem do seu olhar. “Eu gosto das letras”, diz. Aline é divorciada e tem dois filhos, um de 4 e outro de 2 anos, que moram com uma tia. Outro, mais velho, de 7, era paraplégico e faleceu recentemente. Ela visita os filhos de vez em quando e raramente é visitada pela mãe. O único irmão também a visitava, mas quando ela se mudou para o local que fica hoje, no Supermercado Pão de Açúcar da T-63, ele achou que ela estava se escondendo dele e nunca mais apareceu. Aline também tem um namorado, Ricardo Cesar, que está preso. Aline calcula que no ano passado tenha lido mais de cem livros e conta que decidiu registrar os títulos daqui pra frente porque não consegue lembrar-se de todos. “Apenas dos últimos 20 consigo lembrar certinho.” E cita Onde as Árvores Cantam (de Laura Gallego García), que o segurança do supermercado lhe emprestou, e O Semeador de Ideias, de Augusto Cury, autor que diz gostar muito, apesar de não ser adepta do gênero autoajuda. “Ele é autoajuda, mas é diferente.” E completa: “ele vendeu mais e 65 milhões de livros em 60 países”. Informação parcialmente confirmada no site do autor, que dá conta da comercialização de 20 milhões de livros só no Brasil e a presença do autor em 60 países.Adepta da prática da boa vizinhança, Aline fez muitos amigos na redondeza onde mora. “A gente colhe o que planta e você nunca perde quando trata bem as pessoas”, diz. Todo mundo no supermercado conhece Aline, conta a empacotadora Jaqueline Silva. “Ela entra, conversa com os funcionários, e tem muito cliente também que a conhece.” Alguns se sentam ao seu lado no chão para conversar sobre os livros, relata Jaqueline. Tão conhecido como Aline é seu cachorro, o Feijão. É com ele que ela gasta o dinheiro que consegue, afirma a empacotadora Jaqueline. Compra ração e brinquedinhos. Normalmente, Aline lê um livro a cada dois dias e nunca fica sem ter o que ler. Além dos livros que ganha, ela tem livre acesso às prateleiras do Armazém do Livro. A vendedora Adriana Barbosa conta que Aline sempre passava olhando as vitrines do lado de fora e que foi convidada a entrar para ver os livros de dentro da loja. Quando ela pediu um livro emprestado, Adriana deu pensando que ela não devolveria. “Mas não se pode negar acesso a livro a ninguém”, justificou a doação. Ela voltou e trouxe o livro nas mesmas condições que levou. “Ela cuida bem do livro, coloca em uma sacolinha ou na mochila que carrega.” Dessa maneira conquistou a confiança da vendedora, que empresta a Aline o livro que ela quer. “Ela gosta muito de livro didático, principalmente de biologia, e conhece vários autores”, conta. Gosta também de Paulo Coelho. Na rua, Alina é conhecida como a mãe dos moradores de rua. É a ela que eles recorrem quando precisam de alguma atenção de saúde. “Eu sou mais esclarecida”, explica. E ela se cuida também; frequenta os postos de saúde e sempre que precisa de medicamentos pode contar com a ajuda do farmacêutico da Drogaria Raia, que fica em frente ao supermercado. Thiago Terranova chama atenção para generosidade de Aline e também para sua reserva. “Ela não deixa que a gente se aproxime dela.” Ele conta que recentemente ela foi atropelada e que não deixou que o motorista do carro que a atingiu a ajudasse. Aline ainda traz as marcas do atropelamento na cabeça e olho. Mesmo assim, sua lucidez e educação ficaram evidentes para Thiago.