A falta de medicamentos para pessoas que vivem com HIV está se tornando recorrente e tem afetado soropositivos de Goiás. Em três meses há o registro de desabastecimento de dois componentes e de redução da distribuição pela escassez de outros. Com os problemas já concretizados e expectativa de corte de R$ 407 milhões em verbas federais no ano que vem, representantes temem pela vida de quem é assistido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).A Associação Grupo Aids: Apoio, Vida, Esperança (Aave) diz que até este ano não havia registro de falta de medicamentos. Tâmara Gonçalves, membro da diretoria do grupo Aave, diz que entre outubro e novembro houve a falta de Lamivudina. Agora, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) confirma o desabastecimento de Raltegravir 100 mg granulado, destinado ao tratamento de crianças expostas ou vivendo com HIV.Para os dois casos a orientação do Ministério da Saúde (MS) é de que sejam adotados esquemas terapêuticos substitutivos. No caso da Lamivudina foi necessária a substituição por outras substâncias. Para o Raltegravir há a possibilidade de alcançar a dosagem com a combinação de vários comprimidos. Mesmo que isso signifique a possibilidade de haver substituições, pacientes relatam impacto na adesão e adaptação.O representante em Goiás da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+Brasil), Tony Rodrigues, diz que a falta de medicamentos tem se tornado mais uma preocupação para quem lida com a sorologia. “É um clima de incerteza, principalmente diante do anúncio de corte para o ano que vem. É uma questão de vida. Os medicamentos são o que nos garante a vida. Se chegar a faltar na rede, como vai ser o impacto disso na população?”, questiona Rodrigues.O infectologista Marco Aurélio Safadi explica que a troca de medicamentos pode ter consequências muito graves para um paciente. “O controle da doença obtido com uma determinada combinação de medicamentos que zerou a carga viral é determinante para o sucesso clínico”, diz. Desta forma, caso haja uma mudança de medicamentos, pode ser que a resposta não seja a mesma. “O que neste caso ocasionará aumento da carga viral e eventuais consequências clínicas”, pontua.Leia também:- Tratamento de HIV leva à carga viral indetectável e intransmissível- Organizações sociais poderão manter gestão por até 24 anos em Goiás- Sobrecarga de casos simples deturpa Hecad em GoiâniaA Lamivudina, que faltou em outubro, é utilizada em combinação com a Zidovudina e reduz a carga viral do HIV. O tratamento aumenta a contagem de células CD4, que são parasitadas pela Infecção Sexualmente Transmissível (IST). Este conjunto é capaz de desacelerar a progressão da doença e reduzir significativamente a chance de mortalidade.Para a representante da Aave, a falta de Raltegravir 100 mg, que implica na necessidade de combinação de vários comprimidos de dosagem menor, é ainda mais grave porque dificulta o dia a dia das crianças. “É extremamente difícil dar um comprimido, quando passa para quatro fica muito complicado”, diz ao explicar que muitas crianças soropositivas têm quadros depressivos e precisam ter o tratamento facilitado. “Estão entendendo agora sua questão sorológica, às vezes se sentem injustiçadas, e aí você coloca mais dificuldade e empecilho para adesão”, aponta.DistribuiçãoO POPULAR mostrou, em reportagem publicada em outubro, que já havia o registro de limitação da distribuição dos medicamentos em razão dos estoques baixos. Isso significa que enquanto em períodos de normalidade um paciente podia pegar quantia suficiente para até três meses, passou a ter de ir com intervalos de um mês ou 15 dias ao centro de distribuição. “Atendemos pessoas que moram muito longe e que não têm condições de fazer este trajeto tantas vezes”, diz Tâmara ao relatar uma das formas que o paciente pode acabar sem o medicamento.A adesão dos adultos também é um grande problema, avalia a representante do Aave. “A Saúde afirma que as pessoas não estão sem medicação, mas essas mudanças bruscas de esquema podem influenciar na adesão”, reclama.Na análise de Tâmara, a falta de alguns medicamentos causa uma reação em cadeia. Isso porque a partir do momento em que outra substância passa a ser mais demandada, acaba faltando no mercado, o que pode acarretar em mudanças sucessivas no esquema de tratamento. “Por enquanto mantêm com outro medicamento, mas se não tem previsão de quando o outro vai ser reposto, nós podemos esperar que nos próximos dias vai haver falta de um novo”, diz.Corte de R$ 407 milhões gera apreensãoO medo para o próximo ano é que o atual governo prevê um corte de R$ 407 milhões na verba destinada à prevenção, controle e tratamento de HIV/Aids e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Este montante deve representar uma redução de 17,4% na comparação com o previsto para este ano, conforme aponta um levantamento do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps). A medida pode afetar a compra de insumos de prevenção e a inclusão de medicamentos mais modernos. Apesar dos grandes avanços registrados no tratamento da doença, o vírus HIV continua sendo transmitido no País. Em 2021 foram registrados 40,8 mil novas infecções e 11,2 mil óbitos relacionados à Aids, de acordo com o Ministério da Saúde.Para Tâmara, da Aave, o corte irá trazer graves problemas. “Os soropositivos já não são atendidos do modo que deveriam ser. Temos de entrar com medicamentos complementares, para transtornos psicológicos, às vezes medicações para doenças oportunistas. E para isso dependemos de doações. Já é pesado para conseguir atender esta parte, agora imagina um desfalque maior?”, diz. “Estamos falando de pessoas vulneráveis. Os soropositivos com condições melhores conseguem fazer acompanhamento pelo sistema privado. No SUS atendemos pessoas pobres, às vezes sem estudo e emprego, são essas que mais serão afetadas. Estamos falando de pessoas que podem começar a morrer por falta de tratamento”, acrescenta Tâmara.