Quase 35 anos depois do acidente radiológico com o Césio-137 em Goiânia, a junta médica e a comissão avaliativa do Centro Estadual de Assistência aos Radioacidentados Leide das Neves (Cara) analisam semanalmente dez processos de pessoas que tentam integrar a lista de vítimas. Atualmente, estão na fila para análise 307 processos administrativos com solicitações de pensão federal e outros 107 de pensão estadual. A grande maioria das solicitações é indeferida, mas os requerimentos retornam judicializados.“A principal alegação são doenças crônicas”, afirma a diretora do Cara, Julianna de Faria Bretas, há cerca de dois anos no cargo. Uma brecha na Lei 14.226/02 tem levado ex-servidores públicos, civis e militares, e pessoas que tiveram algum tipo de proximidade com vítimas diretas ou áreas contaminadas, a pleitear o benefício. Pela lei, isso é possível “desde que apresentem, a qualquer tempo, manifestação de moléstia diagnosticada como grave ou crônica”, patologias que precisam ser comprovadas pela junta médica e comissão avaliativa específicas. Entretanto, a quase totalidade dos pedidos vem sendo negada.“Não consigo colocar minha perícia em dia. Tenho pedidos de 2019 e eles não param de chegar”, diz Julianna Bretas. Ela detalha que estão na fila para análise 307 processos administrativos com solicitações de pensão federal e outros 107 de pensão estadual. Para agilizar os processos, o Cara uniu os profissionais de saúde que integram as duas instâncias. A junta médica analisa pedidos de pensão federal e a comissão avaliativa, os processos estaduais. Todas as quartas-feiras os interessados são sabatinados por médicos de oito especialidades - nuclear, oncologista, hematologista, dermatologista, oftalmologista, psiquiatra, ginecologista e neonatologista. E todos assinam o laudo.“A maioria dos casos envolve pessoas que alegam ter trabalhado na época do acidente transportando o lixo radioativo, fazendo vigília ou cercando áreas contaminadas”, explica a diretora do Cara. O pedido administrativo é feito junto à Secretaria Estadual de Administração (Sead) que remete o processo para o Cara fazer a perícia. “Normalmente as pessoas não têm ganhado os processos porque já se passaram quase 35 anos, não há mais resquícios de radiação. Tanto os técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) quanto os médicos são categóricos em afirmar que não há mais nenhum tipo de contaminação.”Geralmente, quando a solicitação é indeferida, a pessoa judicializa a questão e o magistrado solicita novo laudo, aumentando o volume de processos analisados pelos profissionais médicos. Em 2021, dos 14 processos com pedidos de pensão estadual analisados, todos retornaram judicializados. “Encaminhamos o laudo ao juiz, mas aí cabe a ele decidir”, relata Julianna Bretas. “A pessoa tem direito, mas não dá para conceder pensão para todos que alegam ser portador de doença crônica, como diabetes, obesidade e hipertensão, patologias que não, necessariamente, estão vinculadas à radioatividade.”AssistênciaO Cara, que substituiu a Fundação Leide das Neves, criada na época do acidente para assistir os radioacidentados, funciona num tripé, como explica Julianna Bretas: “Fazemos a perícia, o monitoramento epidemiológico e a assistência”. Embora 1.200 pessoas estejam cadastradas, somente em torno de 500 são efetivamente monitoradas. “As pessoas dizem textualmente que não querem saber de nós, mas é importante descobrir se esse grupo desenvolveu algum tipo de doença.” A diretora do Cara informa que o levantamento mostra que não houve, após mais de três décadas do acidente, predominância de câncer nesta população e nem mesmo de doenças mencionadas nos pedidos. “Está tudo dentro do padrão, do envelhecimento natural da população.”O Ipasgo foi condenado a fornecer plano de saúde para os radioacidentados, mas o Cara também oferece assistência médica a eles. “Temos uma gama de especialidades, atendemos das 7 às 19 horas e é porta aberta. É mais interessante vir aqui do que aguardar agendamento pelo plano, mas a maioria não tem interesse. Estamos estreitando relações com as associações para mostrar isso.” Cnen ajuda a esclarecer os fatosComo muitos requerentes apelam para o Judiciário, o Cara pediu apoio à direção regional da Cnen para explicar aos novos integrantes da Procuradoria Geral do Estado (PGE) o que foi o acidente radioativo com o Césio-137 e como ocorreu a descontaminação. “Decidimos por uma palestra técnica, porque muitos procuradores ainda eram crianças ou nem tinham nascido em 1987. Foi interessante para que eles tivessem uma noção maior do fato no momento de defender o Estado.” O Cara planeja fazer o mesmo em setembro envolvendo a Procuradoria Geral da República (PGR), a Advocacia Geral da União (AGU), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e integrantes da magistratura. “Talvez eles sintam necessidade de mais informações sobre uma demanda que conhecem pouco.”Para a palestra técnica na PGE, Julianna Bretas convidou Walter Mendes Ferreira, coordenador do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste, o braço da Cnen em Goiás. O físico foi o profissional que identificou o acidente com o Césio-137 no dia 29 de setembro de 1987 e acionou as autoridades competentes, entre elas a Cnen, que imediatamente deslocou para a cidade uma grande equipe de técnicos especializados. Nos meses que se seguiram, Walter integrou as equipes de identificação, dos primeiros atendimentos aos radioacidentados e de ações no isolamento das áreas contaminadas. Depois de uma longa temporada no Rio de Janeiro, ele voltou a Goiânia em setembro de 2021.“Na palestra que fiz para os procuradores, falei sobre a real história do acidente, alertando-os sobre o momento atual e a judicialização. Há um volume de demanda jurídica buscando pensões vitalícias e indenização por danos morais sem nenhum sentido. O Estado brasileiro não pode consumir dinheiro público desnecessariamente, é criminoso. Ninguém quer tirar direito de alguém, mas o Estado não pode dar direito a quem não tem. Não existem pessoas contaminadas após 35 anos”. Conforme o físico, 30 anos é a meia vida do Césio, já a meia vida biológica do isótopo radioativo gira em torno de 110 dias. Para Walter Mendes, as alegações são completamente absurdas. “Muitas dessas ações vêm de policiais militares da época, cuja função era somente efetuar a vigilância física das áreas contaminadas ou do depósito provisório de Abadia de Goiás. A Cnen jamais empregou militares para executar funções técnicas. O trabalho deles se dava em áreas livres, isentas de radiação, onde o público podia circular naturalmente. Chega-se a dizer que ao fazer a vigilância no depósito a pessoa adquiriu obesidade, hipertensão e até fascite plantar.”Desde que retornou a Goiânia, Walter Mendes tem sido acionado para ajudar na defesa técnica dos processos. “Fico assustado com as informações errôneas anexadas nos pedidos de pensão e seus motivos”. Teve uma pessoa que alegou que no dia 13 de setembro de 1987 isolou a Rua 57 com mais dois colegas e que havia muitas pessoas chorando. Ora, identifiquei o acidente somente no dia 29. A Cnen tem um banco de dados com todas as pessoas que trabalharam na época.” O físico ressalta que a Cnen nunca utilizou soldados ou bombeiros para o isolamento das áreas contaminadas. “Até porque para fazer essa ação é preciso ter conhecimento de detectores e de segurança radiológica.”João de Barros Magalhães, que trabalhou no antigo Crisa, hoje Goinfra, acredita que os pedidos continuam até hoje porque na época em que foram criadas as leis de concessão de pensões, “as pessoas não acreditaram”. Em 2014 ele decidiu criar uma associação específica para reunir os trabalhadores que fizeram o transporte dos rejeitos radioativos. “Muita gente que trabalhava na sede do depósito, com carreta, não foi beneficiada. E alguns recebiam com contra-recibo”, justifica. Pensão não é reajustada desde 2018Sem reajuste desde 2018 em nas pensões especiais concedidas pelo Governo de Goiás em 1989, as vítimas do acidente radiológico com o Césio-137 estão mobilizadas para conseguir a atualização de valores. Atualmente, conforme o Centro Estadual de Assistência aos Radioacidentados Leide das Neves (Cara), há o pagamento de 336 pensões federais e 644 estaduais. Há pessoas que recebem acumuladamente os dois rendimentos.Divididos em três associações, elas buscam alternativas para fazer valer a Lei 14.226/02 que prevê o benefício. A maior parte dos radioacidentados recebe atualmente 954 reais. Parte deles recebe em dobro em razão da gravidade das lesões e da exposição à radiação. Alguns acumulam a pensão federal, hoje no valor de R$ 1.212,00, que segue a atualização do salário mínimo. O benefício estadual deveria ser reajustado anualmente via decreto governamental. Mas, segundo os responsáveis pelas entidades que congregam as vítimas, isso não ocorre. Nesta quinta-feira (28), às 14 horas, o assunto será discutido numa reunião convocada pela Associação dos Contaminados, Irradiados e Expostos ao Césio-137 (Aciec), que reúne os antigos trabalhadores do Crisa, que fizeram o transporte dos rejeitos radioativos para o depósito de Abadia de Goiás. Em janeiro de 2019, a Aciec encaminhou ofício ao governador Ronaldo Caiado (UB) pedindo que o reajuste seguisse também o valor do salário mínimo. “Eles falaram que causaria impacto no orçamento, mas já são quase quatro anos sem reajuste. Tudo o que pagamos, como água e energia, foi corrigido nesse período. É uma situação difícil para todos nós”, afirma o presidente João de Barros Magalhães. Junto com Sueli Lina de Moraes Silva, que preside a Associação das Vítimas do Césio, que congrega 120 pessoas dos grupos 1 e 2, as mais lesionados, a Aciec trabalha no sentido de agilizar a tramitação na Assembleia Legislativa (Alego) do projeto, de autoria do deputado Major Araújo (PL), apresentado em 2019, que propõe o reajuste da pensão especial. Com a assessoria jurídica do ex-promotor de Justiça Marcelo Celestino, que se aposentou de suas funções no Ministério Público de Goiás (MPGO) em janeiro de 2021, a entidade tem atuado também na base do governo na Alego. Já a Associação dos Militares Vítimas do Césio-137, presidida pelo tenente-coronel Luiz Gonzaga Barros Carneiro, acionou diretamente a Secretaria da Economia, solicitando que o reajuste da pensão seja concedido na data base dos servidores públicos estaduais. A entidade reúne 394 militares radioacidentados, dos quais 83 acumulam ambas as pensões. Em nota ao POPULAR, a pasta informou que “a equipe técnica está avaliando a solicitação e em breve dará retorno sobre a viabilidade jurídica de inserção no último reajuste da data base deste ano.”