Sem emprego desde o ano passado e com a aposentadoria da esposa sendo engolida pela inflação em 2021, o servente de obras Júlio César dos Santos, de 52 anos, viu a dispensa da cozinha vazia novamente e resolveu seguir o conselho de um amigo: na manhã de quarta-feira (6), foi buscar, pela primeira vez, alimentos que eram dispensados pelos produtores da Centrais de Abastecimento de Goiás (Ceasa-GO), no Jardim Guanabara, em Goiânia. “Já estava bem difícil, mas só que agora não tá dando mais para comprar nada, tudo caro demais. Subiu demais verdura. Esse mês a gente não teve como”, comentou.Na mesma semana, Elaine Pereira, de 37 anos, foi com alguns parentes na noite de quinta-feira (7) esperar em uma fila pela entrega de marmitas na Avenida Independência, no Setor Central, também na capital. Todos os adulto da família de 16 pessoas pegaram Covid-19, perderam o emprego e só um conseguiu até agora um novo trabalho. “Se não fosse essa comida aqui, não sei como seria. Esse ano foi muito pesado”, comentou, ao lado da irmã, cunhado, filhos e sobrinhos que a acompanharam.Quem não tem para onde correr e depende de entrega de cestas básicas ou alimentos recolhidos por terceiros também sofre com a queda nas arrecadações. Maria do Rosário da Silva, de 49 anos, vive em uma ocupação no Setor Estrela D’Alva há seis meses em uma barraca improvisada com a filha e dois netos. Só com o dinheiro da aposentadoria, depende de entrega de mantimentos por entidades. Há alguns meses, isso começou a rarear. “Tá mais difícil chegar e a gente tenta se virar com o que tem.”O número de famílias carentes que dependem de doação de alimentos para sobreviver já vinha aumentando desde que o coronavírus chegou ao Brasil, em março do ano passado, mas cresceu ainda mais nos últimos sete meses, quando, associados às consequências da pandemia, vieram outros problemas graves, como a inflação. E para tornar a tragédia ainda pior o volume de comida doado não se eleva na mesma proporção.O total de pessoas que buscam comidas no Banco de Alimentos da Ceasa-GO, administrado pela Organização das Voluntárias de Goiás (OVG), que já havia saltado de uma média de 100 antes da pandemia para em torno de 500 ao longo de 2020, passou para mais de 800 a partir de março de 2021 e desde julho ultrapassou a marca de mil. Estas informações constam em relatórios divulgados mensalmente pela instituição.Existem poucos parâmetros para medir o tamanho da fome em Goiânia no momento. Um é a procura no Banco de Alimentos, que é abastecido com doações de produtores da Ceasa em um trabalho de busca ativa e diálogo feito pela OVG. Outro é conversando com os grupos – geralmente ligados a instituições religiosas – que distribuem refeições nas ruas. Voluntários que entregam marmitas todas as noites de quinta-feira na Avenida Independência contam que, nos últimos quatro meses, a distribuição praticamente dobrou e em vez de apenas moradores de rua agora é comum atender famílias com residências. “Não vinha criança antes e agora tem muitas. Antes conseguíamos ir em três pontos diferentes da cidade até umas duas da manhã. Agora acaba tudo aqui neste ponto e antes das 20h”, comentou André Correa, voluntário do Centro Espírita de Regeneração Chico Xavier.Coordenador de outro grupo que entrega marmitas no mesmo local, Wender Veloso, do Grupo Espírita Amor e Vida, diz que muitas famílias que aparecem lá nos últimos quatro meses reclamam da falta de condições de comprar gás de cozinha e até de acidentes provocados por improvisos usados para cozinhar alimentos. “Elas vieram para cá em busca de alimento porque não estão conseguindo mais. A crise afetou as famílias mais carentes de uma forma muito cruel neste ano”, afirmou.O grupo Amor e Vida, que antes entregava 400 refeições em três pontos de Goiânia, agora faz mais de 900. E todas acabam rapidamente também na Independência. “Estou há 12 anos nesse trabalho e este é o pior momento pelo qual passamos. Nunca vimos uma situação tão crítica assim”, comentou.A situação se torna ainda mais complicada visto que a oferta de alimentos doados não tem aumentado. Pelo contrário. No Banco de Alimentos, em agosto, quando a procura já ultrapassava o número de mil pessoas, a OVG teve o pior mês de doações. A diretora de ações sociais da entidade, Jeane Abdala, reconhece que a oferta não acompanha a demanda, mas diz que agosto foi atípico por causa de questões envolvendo a colheita de alimentos, que impactou nas doações.Jeane diz que na OVG a estratégia tem sido otimizar a busca pelos alimentos e evitar cada vez mais o desperdício, aproveitando ao máximo cada alimento, orientando as famílias a como fazer isso em casa também e ajudando as pessoas com outros encaminhamentos que a façam sair da situação de miséria. Nas ruas, a situação é mais complicada. Os voluntários que entregam refeições dizem que caiu o total de alimentos doados. “Estamos tendo de procurar mais, conversar com mais gente, ir a mais lugares. Por outro lado, está crescendo sem parar a procura”, disse um dos que entregavam marmita na Independência.-Imagem (Image_1.2335680)-Imagem (1.2335595)