Em Goiás, 10% dos óbitos infantis ocorrem devido a cardiopatias congênitas, que envolvem variados tipos de malformações do coração. Até o final do ano passado, a principal dificuldade enfrentada pelas famílias estava relacionada às cirurgias pelo Sistema Único de Saúde (SUS) que poderiam evitar estas mortes, pois a estrutura existente é insuficiente para atender a demanda. Agora a situação se agravou, pois pelo menos desde janeiro a rede pública em Goiânia não oferece mais atendimento ambulatorial nem consultas com cardiopediatras ou ecocardiograma, exame fundamental no diagnóstico de problemas no coração.Desde que o Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Goiás (UFG) suspendeu o atendimento ambulatorial há dois anos, o serviço passou a ser feito apenas pelo Hospital Materno Infantil (HMI) e pelo Hospital da Criança. No começo do ano, ambos fecharam o ambulatório. As consultas com cardiopediatras, que também só eram realizadas nestas duas unidades, estão suspensas desde o fechamento dos ambulatórios.No caso do ecocardiograma, uma espécie de ultrassonografia do coração, que podia ser feito no HMI e no Hospital da Criança e em algumas clínicas particulares credenciadas ao SUS, agora não é mais possível de ser agendado pelo SUS. Diretora do departamento de cardiologia pediátrica da Sociedade Goiana de Pediatria, a médica Mirna de Sousa explica que após a suspensão de um complemento pago pela Prefeitura de Goiânia por exame realizado todas as unidades que atendiam pela rede pública deixaram de fazê-lo.“As clínicas e hospitais credenciados recebiam R$ 137,75 por cada exame realizado. Esse valor caiu para R$ 90,00 (eletivo) sem complemento da Prefeitura de Goiânia, apenas pelo custeio do Ministério da Saúde. Foi aí que as clínicas afirmaram que o valor não paga o custo operacional, que é de R$ 108,92, em média”, afirmou Mirna.O HMI e o Hospital da Criança seguem fazendo ecocardiograma apenas nos casos de internação. “O que acontece hoje é que pelo SUS só é possível fazer ecocardiograma de pacientes internados no Hospital Materno Infantil, Hospital da Criança e na Maternidade Dona Íris. No Materno, uma médica saiu recentemente e a única que ficou atende os bebês e crianças que estão internados”, afirma Mirna.Para a médica, a consequência de toda a situação é um problema básico de diagnóstico das cardiopatias. Em nota, a Secretaria de Estado de Saúde de Goiás (SES-GO) afirmou que 201 exames de ecocardiograma em crianças foram realizados no HMI entre janeiro e fevereiro, mas todos em internações.Fila para cirurgiaA falta de atendimento básico, que garantiria o diagnóstico de doenças cardíacas, impactou também na fila para cirurgias, segundo Mirna. “Sempre tivemos problemas com a fila de cirurgias e hoje a fila não é tão grande. Ela existe no Hospital da Criança, mas não é grande porque os bebês e crianças não estão sequer recebendo o diagnóstico. Os pacientes estão morrendo antes de conseguir chegar à fila de cirurgia. Então quando eu olho os números, tenho uma fila cirúrgica que diminuiu não porque aumentamos o número de cirurgias, mas porque diminuímos o número de diagnósticos”, finaliza a diretora.Um grupo que começou em 2012 com três mães em Goiânia, hoje reúne dezenas de famílias que se comunicam pelo whatsapp e que juntos buscam diagnóstico, tratamento, cirurgias e acompanhamento para as crianças. Martha Camargo, uma das pioneiras do grupo “Amigos do Coração”, conta que diariamente é acionada e que o grupo foi se fortalecendo muito. Recentemente, chegaram a pagar por alguns ecocardiogramas de casos mais graves, mas não há médicos para o retorno .“Recentemente tivemos um caso mais grave e nos unimos para pagar um exame. A criança teve uma parada cardíaca em casa, foi avaliada por um cardiologista de adulto e o laudo falava que era gravíssima e que poderia morrer a qualquer momento. Não podemos assumir responsabilidade do Estado, mas também não podemos deixar essas crianças morrerem”, completa Martha. Hugol apresenta nova previsãoA Secretaria Estadual de Saúde de Goiás (SES-GO) deu um novo prazo para que o Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol) passe a fazer cirurgias cardiopediátricas, ajudando assim a reduzir a fila pelo procedimento: até abril deste ano, com possibilidade de ser ainda neste mês. Não é a primeira vez que a pasta adia o prazo, sendo que o último ainda estava marcado para 2019. Em nota, a SES-GO informou que o Hugol encontra-se em fase de “estruturação dos recursos humanos, insumos, equipamentos e fluxos, para início da prestação desse serviço de alta complexidade, de forma escalonada”. A secretaria também diz que até o momento o Hospital da Criança, localizado em Goiânia, é a única unidade que realiza cirurgias cardíacas neonatais em todo o território goiano, tanto na rede privada quanto pelo SUS e atende pacientes de outros Estados.Para reverter essa situação com a ampliação da rede de assistência, a pasta afirma que foi assinado um novo termo aditivo do contrato de gestão da SES-GO para o Hugol e que serão ofertadas cirurgias eletivas cardíacas neonatais, pediátricas e adultas na unidade. “O Hugol é o único hospital do Estado hoje que tem UTI, ambulatório, enfermaria, hemodinâmica e centro cirúrgico”, explica a diretora da Sociedade Goiana de Pediatria, Mirna de Sousa. Mãe luta para conseguir atendimentoNo Brasil, a cada 100 bebês nascidos vivos, um é portador de cardiopatia congênita e esse tipo de doença é a terceira causa de morte em recém-nascidos, segundo o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS). Isso porque alguns casos são tão graves que podem levar à morte em horas após o nascimento. Jacqueline Vieira Rocha, de 26 anos, teve inúmeros problemas na gravidez como diabetes e pressão alta. O parto de Maria Alice foi realizado no Hospital Materno Infantil (HMI), mas o diagnóstico de Comunicação Interventricular (CIV), um tipo de cardiopatia, só veio um mês depois. Hoje, com 1 ano e 3 meses, a menina precisa de acompanhamento médico, exames regulares e anualmente recebe doses da vacina Palivizumabe, medicamento indicado para aumentar a proteção de crianças contra a infecção pelo vírus sincicial respiratório (VSR). Sem médicos, o atendimento da menina está paralisado. A mãe conta que quando Maria Alice estava com um mês de vida percebeu que a bebê tinha um cansaço acima do normal. No início, pensou que se tratava de uma gripe, mas logo veio o diagnóstico inicial em uma consulta no Cais de Campinas. Ela foi encaminhada ao HMI e o primeiro ecocardiograma, em janeiro do ano passado, apontou um sopro no coração. Desde então, ela era atendida na unidade de saúde até que os serviços foram deixando de ser oferecidos. “Minha filha era atendida por uma médica no HMI e quando ela saiu de licença-maternidade, ficamos seis meses sem acompanhamento. Quando ela retornou, no final do ano passado, pediu um ecocardiograma que já não estava sendo realizado no hospital. Pagamos particular R$ 250, com ajuda e, quando tentamos o retorno, ela havia se desligado do trabalho. Desde janeiro não há ninguém no local e sempre que ligo não há previsão. Não sei se a cirurgia é necessária ou não. Outro problema é que ela recebe a vacina Palivizumabe e já perdeu a primeira dose deste ano porque apesar de custar R$ 5 mil eu conseguiria gratuitamente se fosse receitada por médico. Sem atendimento, ela não pode ser vacinada”, lamenta.