Quando William José Costa se deparou com aquele objeto o olhar foi de encantamento da criança que era. Ele estava com 12 anos quando o funcionário do pai, fazendo varrição para encontrar sementes na Serra da Jiboia, no município de Nazário, a 71 km de Goiânia, tocou na pequena machadinha de pedra polida. Era o brinquedo que William não tinha. Sem saber do que se tratava, guardou a ferramenta durante anos, primeiro num baú e depois num cofre. Hoje, aos 44 anos, o classificador de couros decidiu que é hora de passar a machadinha para frente por entender que é um bem valioso que precisa ser compartilhado.Situações como a vivida por William não são incomuns. Muitas pessoas encontram objetos em prováveis sítios arqueológicos e as retêm, às vezes por curiosidade, outras por afeição ou ainda porque imaginam que eles têm valor monetário. “Não têm. Eles possuem valor histórico, cultural e informativo sobre a história das populações indígenas que viveram nesses sítios. E fora desse contexto não fazem sentido”, explica o arqueólogo Diego Teixeira Mendes, vice-diretor do Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás. O ideal, segundo ele, é que objetos arqueológicos não fossem coletados para que especialistas pudessem estudá-los dentro do ambiente onde se encontram.No Brasil, o patrimônio arqueológico pertence à União e é protegido por uma série de leis, entre elas a Constituição Federal. Mas não há um controle sistemático sobre essas áreas, até porque muitas delas são desconhecidas. Em Goiás, estima-se que há cerca de 4 mil sítios registrados junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como é estabelecido pela legislação, mas há outros tantos em abundância. “A ocupação pelos primeiros indígenas do território goiano data de, no mínimo, 12 mil anos. A tendência é que Goiás seja ladrilhado de sítios arqueológicos, muitos inexplorados”, afirma Diego Mendes. Ele lembra que nesse universo são incluídos, além das heranças dos primeiros moradores, ainda fazendas coloniais, quilombos e edificações em áreas urbanas.Quando o pai de William viu a machadinha, disse logo que tratava-se de uma “pedra de raio”. Era assim que os antigos denominavam coisas que, provavelmente, caiam do céu, como meteoritos. “Mas eu sempre tive dúvidas. Como cai do céu uma pedra lapidada assim? Se passar o dedo, corta”, diz William. Durante mais de 30 anos, a peça ficou guardada com muito cuidado e, ocasionalmente, ele a mostrava para outras pessoas. Antropólogo e arqueólogo e um dos mais profundos conhecedores do Cerrado brasileiro, Altair Salles, lembra que classificar machadinhas, de material lítico, de “pedra de raio”, era costume comum entre moradores mais antigos de Goiás, Minas Gerais, Bahia e até do Rio Grande do Sul.Diego Mendes explica que em situações assim, arqueólogos tentam manter um diálogo positivo com quem retém a peça porque a pessoa pode ajudar a preservar um sítio arqueológico. “A maioria das pessoas não sabe que é crime coletar esses objetos e às vezes o fazem com a melhor das intenções. O que tentamos é manter uma relação de colaboração com elas porque poderão fazer uma gestão direta dos sítios arqueológicos”, explica Diego Mendes. O vice-diretor do Museu Antropológico informa que a unidade recebe esse tipo de objeto. “Elaboramos um termo de doação e coletamos o maior número de informações numa tentativa de aproximá-la de nossas coleções. Se isso não for possível, ela entra para nossa reserva técnica e pode ser usada em exposições ou para fins didáticos.É o que também acontece no Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGPA), vinculado à Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Coordenadora do Núcleo de Arqueologia, Sibeli Viana orienta que, em casos de descoberta de peças arqueológicas, o ideal é que a pessoa reporte ao Iphan para o registro do sítio, mas o IGPA também recebe esses objetos. “É importante não ficar com essas peças em casa porque elas serão úteis para um público maior, ou serão expostas ou usadas para fins didáticos, em cursos de Arqueologia. A professora enfatiza que escavações devem ser feitas somente por quem detém o conhecimento científico. A coleção de OuroanaDanilo Curado, arqueólogo do Iphan de Goiás, conta que a prática do colecionismo de bens arqueológicos é comum em todo o território nacional. “As pessoas desconhecem a rigidez da legislação e quando encontram um machado polido, uma panela de barro ou uma flecha que estão relacionados à memória indígena ou ao período colonial, acabam guardando. O correto é entrar em contato com o Iphan, órgão do governo federal que é responsável pela gestão deste patrimônio.” Peças assim podem integrar a reserva técnica do Iphan ou ser encaminhadas para uma instituição de guarda, mas há outras soluções intermediadas pelo órgão.Foi o que aconteceu com o servidor público Geraldo Acir de Freitas, de 66 anos, que vive no distrito de Ouroana, município de Rio Verde, no Sudoeste goiano. Filho dos fundadores do local, Geraldo do Ouro, como é conhecido, não somente é apaixonado pelo lugar que vem atraindo turistas pela profusão de cachoeiras, como também é atento ao que “brota” da terra, e não somente espécies vegetais. Na propriedade rural da família foi coletando uma série de objetos que o levaram a se envolver com os mistérios da arqueologia. “Fui guardando tudo numa caixa e as pessoas ficavam sabendo e começaram a trazer outras peças. Depois achei que dava para trabalhar com arqueologia pensando no turismo.”Orientado por pesquisadores, ele procurou o Iphan que esteve na região para catalogar os objetos. O órgão elaborou um termo oficial deixando Geraldo como fiel depositário das peças. Hoje, a maior parte do material está exposta no Centro de Atendimento ao Turista (CAT) de Ouroana, com informações detalhadas por uma arqueóloga. “Tenho aqui machadinha, almofariz, cumbuca, quebra-coco, bigorna”, conta Geraldo. Para ele, Ouroana que está localizado num vale rodeado de serras, possui muitos sítios arqueológicos porque a região é rica em recursos hídricos. No Iphan não há informações de que essas prováveis ocupações tenham sido estudadas.Danilo Curado lembra que há casos em que o Iphan é informado de comercialização de peças arqueológicas. “Quando há indícios de venda a questão torna-se criminal e envolve a Polícia Federal e a Justiça Federal.” Para o arqueólogo movimentos proativos como o de William e de Geraldo do Ouro são vistos com bons olhos pelo órgão. “Essas pessoas são polarizadoras na região e, por causa disso, são referência para o Iphan, mas o órgão não incentiva as coletas porque o material está descontextualizado. O que tentamos fazer é um trabalho de educação patrimonial.”Fazendo uma analogia, Diego Mendes, do Museu Antropológico, explica que todos nós temos uma cozinha com objetos expostos de forma diferenciada. “Se eu tiro uma panela do lugar, como vou descobrir de que maneira ela estava inserida no ambiente? É o que ocorre nos sítios arqueológicos. Como vamos entender como aquelas populações viviam analisando uma peça fora do contexto?” O arqueólogo ressalta que não apenas as relações afetivas, mas também a negação de muita gente que tenta apagar a história indígena são temas relevantes e de interesse científico.-Imagem (Image_1.2129088)