-Imagem (1.2426712)Já reconhecido como o mais importante produto na cadeia produtiva rural de Bela Vista de Goiás, município a 50 km de Goiânia, o Polvilho do Cará é alvo agora de um projeto de estruturação de Indicação Geográfica (IG) junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que será coordenado pelo Instituto Federal Goiano (IF Goiano) em parceria com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). A expectativa dos produtores, unidos pelo sistema de cooperativa, é de que o registro fortaleça o desenvolvimento sustentável na região, unindo economia, história, cultura e turismo.Presidente da Cooperativa Mista dos Pequenos Produtores de Polvilho e Derivados da Mandioca da Região do Cará (Cooperabs), José Atair da Silva Neto comemora. Há cerca de quatro anos, com o apoio do Mapa, do Sebrae e da Agência Goiana de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-GO) a cooperativa tenta obter o registro, processo que ficou prejudicado pela pandemia da Covid-19. “Um diagnóstico do Sebrae já mostrou que temos potencial para a IG, mas falta a parte documental que será realizada agora, no período de um ano. Estamos com muita esperança de conseguir.” Se isso ocorrer, será a terceira IG de Goiás, depois da Cooperativa dos Produtores de Açafrão de Mara Rosa (Cooperaçafrão) e da Associação Cultural e Ecológica dos Artesãos em Prata de Pirenópolis (Aceappa).O projeto da IG do Polvilho do Cará foi lançado esta semana pelo IF Goiano durante cerimônia virtual. Ele foi aprovado em segundo lugar em um dos eixos da Chamada Pública realizada pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec), do Ministério da Educação, em parceria com os Institutos Federais de São Paulo (IFS) e do Espírito Santo (Ifes). O objetivo do edital é apoiar o desenvolvimento de projetos destinados ao registro e ao desenvolvimento de Indicações Geográficas e Marcas Coletivas, baseando-se em atividades de pesquisa, extensão, estímulo ao empreendedorismo e à inovação. No mesmo edital, o IF Goiano aprovou projeto para a jabuticaba de Hidrolândia.O professor Bruno Martins, que é doutor em tecnologia de alimentos, conta que o Núcleo de Estudos em Agroecologia que coordena no câmpus avançado do IF Goiano em Hidrolândia, integra um projeto junto à Emater-GO para fortalecer a cadeia produtiva da jabuticaba. “Quando apareceu o edital da IG, levantei a bandeira para submeter um projeto de avaliação do potencial da jabuticaba, mas aí apareceu a oportunidade de trabalhar com a comunidade do Cará. A IG é uma alternativa muito interessante para favorecer a economia, a cultura e as pessoas. É o desenvolvimento sustentável aplicado. Submetemos ambos os projetos que foram aprovados.”Veja também- Mandioca para cerveja incrementa renda de produtores familiares- Trajetória indígena tem influência direta na cultura e na formação da identidade de GoiásEm um ano, professores e estudantes do IF Goiano, ao lado de técnicos do Mapa e do Sebrae, com o apoio da Cooperabs, deverão elaborar o dossiê histórico cultural da comunidade do Cará e o caderno de especificações técnicas da produção local. “Precisamos organizar de forma sistemática a história, com as evidências, reportagens, fotos e depoimentos, uma linha do tempo desse saber popular”, explica Bruno Martins. Já o caderno de especificações técnicas é, segundo ele, a “alma” do documento que será apresentado ao INPI. Ele traz características da região, do produto, do processo de produção e as formas de rastrear o uso da IG pelos produtores.“A IG valoriza o produto, o território e as pessoas envolvidas, favorecendo a economia e o turismo. Vemos isso em Minas Gerais com a produção da cachaça e do queijo da Serra da Canastra. Goiás tem potenciais incríveis. Acreditamos que não haverá dificuldade da comunidade do Cará para conseguir o registro junto ao INPI ser por uma cooperativa muito organizada, que trabalha há muito tempo a marca coletiva”, aposta Hugo Martins. Existem dois tipos de IG: a indicação de procedência e a denominação de origem. “No primeiro, protegemos a região em função da tradição, do saber popular. No segundo, mostramos particulares em relação ao clima, solo, etc. Não se inventa uma IG, a reconhece.”Mais de 60 anos de história A comunidade do Cará, nome que ganhou força pela proximidade com o córrego que banha a região, a 9 km de Bela Vista de Goiás e a 60 km de Goiânia, surgiu em 1956 quando um grupo de cinco famílias de agricultores, capitaneadas pelo casal Antônio Batista da Silva e Etelvina Rosa de Jesus, chegou à Bela Vista, vindos de São João da Paraúna, também em Goiás. Compadres entre si, adquiriram as terras e passaram a produzir o polvilho contando com o apoio conjunto, em regime de mutirões. A ação coletiva fortaleceu a paixão pela tradição como valor agregado. Com a morte de Antônio, a comunidade começou a se desintegrar. Muitos deixaram a área e os que ficaram passaram a concorrer entre si, enfrentando o desafio de competir também com o polvilho industrial. Foram esses os motivos que os levaram a fundar a Cooperabs em 2005, mudando a realidade das 52 famílias cooperadas, mais de 300 pessoas, que produzem 60 toneladas de polvilho por mês, totalmente artesanal. “A cooperativa mudou a região não só economicamente, mas socialmente. Antes, só duas pessoas tinham CNH aqui, hoje todos têm. Ninguém fazia faculdade, hoje 24 jovens têm curso superior, com o nosso incentivo para que continuem na comunidade”, detalha José Atair, bisneto do casal pioneiro Antônio e Etelvina.As famílias do Cará vivem distantes uma da outra num raio de dois quilômetros. “Fazemos tudo junto e misturado, trabalho, festas e mutirões. Somos uma família gigante.” José Atair revela que sempre aparece alguém querendo se associar. “Não aceitamos porque o cooperativismo é para nós, como uma religião. Anunciamos as reuniões e todos vêm. Se colocar pessoas de fora não terá o mesmo espírito. Prezamos muito por essa união, por nossa história e valores.”Como os núcleos familiares possuem, no máximo, um hectare, a Cooperabs arrenda 600 hectares, distribuídos em lotes como num condomínio. É a cooperativa que ara a terra e faz o plantio, cabendo a cada família colher a mandioca e produzir o polvilho em casa, posteriormente entregue na Cooperabs que o comercializa. Esse trabalho conjunto, que trouxe de volta para casa alguns dos que emigraram, faz de Bela Vista de Goiás a maior produtora de mandioca do estado.Atualmente a cooperativa produz não apenas o polvilho, mas também farinha, farofa, mandioca congelada, mandioca ralada e massa de tapioca. Amparada por órgãos como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e Emater-GO, a cooperativa levou conhecimento tecnológico e de novas técnicas de plantio às famílias. O Sebrae é parceiro importante no processo de comercialização, diversificação de produtos e de desenvolvimento da identidade. O Polvilho do Cará tem marca própria, clientes de peso e começa a extrapolar fronteiras. “Na pandemia, vendemos polvilho para a Fundação Nacional do Índio (Funai) para abastecer comunidades indígenas do Mato Grosso”, conta José Atair. Um aspecto social na agricultura familiar sustentada pela Cooperabs é a valorização da mulher trabalhadora. “Quando assumi a presidência, em 2011, apenas os homens participavam das reuniões. Eu pedi que as mulheres também viessem, para não ter ruído na comunicação. Quando elas começaram a participar, solicitaram uma cota porque não queriam mais pedir dinheiro aos maridos. Desde então, no dia do pagamento recebem a cota delas separada”, diz José Atair. Com a entrada em ação do IF Goiano, o presidente da Cooperabs vislumbra novos caminhos, como o investimento no turismo. “Além de ser um selo de credibilidade, a IG vai nos dar visibilidade. Hoje recebemos escolas e tem criança que não sabe que a mandioca vem do chão. Na indústria, a mandioca entra na linha de produção e o polvilho fica pronto em uma hora e meia, que é a fécula. O nosso precisa de 15 dias em razão do processo de fermentação e secagem ao ar livre, em jiraus. Tem todo um processo de conhecimento e quem não entende, não sabe a diferença.”Selos lançados em dezembroEm dezembro último, o Governo Federal e o Sebrae lançaram os Selos Brasileiros de Indicações Geográficas para identificar e valorizar produtos e serviços tipicamente brasileiros reconhecidos pela origem. Na ocasião, o presidente do INPI, Cláudio Furtado, lembrou que o IG agrega valor, garante a segurança no consumo e a rastreabilidade. O Brasil possui atualmente 88 IGS reconhecidas. A expectativa é que até 2030 sejam concedidas outras 400. Cada região com registro de IG pode definir a própria representação gráfica do seu nome geográfico, possuir o seu próprio selo, que é opcional. Porém, há agora um selo nacional que todas as IGs poderão usar junto com a identificação da sua IG, como referência única, facilitando a identificação por parte do consumidor dos produtos/serviços das Indicações Geográficas, o que valoriza as riquezas típicas do Brasil.