Em quase 20 meses de pandemia, mais de 136 mil crianças nasceram em Goiás, conforme dados do Portal de Transparência do Registro Civil. Pelo menos outras 84 mil nascidas em 2019 tinham idade máxima de um ano no início do período de isolamento. De bebês a adolescentes, todos foram afetados pelas distâncias e mudanças relacionadas ao convívio e à socialização. Para os menores, entretanto, o mundo já começou mais íntimo, cheio de máscaras, com menos abraços e raras brincadeiras em praças e parques. Em uma forma de proteção individual e coletiva, a distância virou demonstração de afeto. E como isso afeta cada um deles?Uma pesquisa desenvolvida pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) apontou que se pode levar dez anos para que crianças e adolescentes recuperem os prejuízos de desenvolvimento e emocionais causados pela Covid-19. Vice-presidente da Sociedade Goiana de Pediatria (SGP), a pediatra de desenvolvimento e comportamento Ana Márcia Guimarães explica que as pesquisas recentes apontam que todas as faixas-etárias sofreram, mas com prejuízos diferentes. Para os menores, atraso na linguagem, menos estímulos e dificuldade de socialização. Noss adolescentes, ansiedade, estresse e internet em excesso. Para todos eles foi também comum o aumento do tempo de tela sem controle ou supervisão, prática considerada prejudicial pelos especialistas.“As crianças podem demorar um pouco mais para adquirir habilidades cognitivas, motoras e emocionais, mas existe um limite máximo. Quando esse limite chega não podemos dizer que a criança tem o tempo dela. Essa criança precisa ser encaminhada aos especialistas. Não dá para as famílias saberem de tudo, mas os pediatras são responsáveis por acompanhar o desenvolvimento de cada faixa etária. É importante comparecer às consultas regulares, mesmo que a criança não esteja doente”, completa a vice-presidente da SGP.Ana Márcia Guimarães pontua que existem cinco pilares do desenvolvimento: motor, linguagem, socioemocional, adaptativo e cognitivo. Mesmo sendo necessária avaliação profissional, ela afirma que alguns pontos podem ser observados pela família: “Com 1 ano e meio, as crianças tendem a falar entre 5 e 20 palavras. Aos 2 anos, geralmente frases de duas palavras, e, aos 3 anos, a conversa é similar à de um adulto. O andado geralmente ocorre até 1 ano e 5 meses. Podemos observar se a criança come bem, dorme bem, se é uma criança que gosta de brincar, que tem interesse em estar junto de outras crianças da mesma idade”, completa.Giordânio Bonifácio Lasmar Marques, de 29 anos, é publicitário, empresário e pai da Naya Lua, de 4 anos. O aniversário de três anos foi comemorado logo após a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar a pandemia do coronavírus. E foi aí que a rotina mudou por completo. Antes, Naya ficava no CMEI em período integral. “Buscava ela às 17 horas e tínhamos nossos momentos juntos antes de jantar e dormir. Descíamos no prédio e ela encontrava muitos amigos no parquinho, na pracinha, sempre saímos muito para parques. Estava cercada de crianças o tempo todo. Ela estava no processo de desenvolvimento da fala, falava frases completas, mas faltando algumas letras ou ainda gaguejando um pouco e logo no começo do isolamento a gente percebeu um atraso”, conta o pai.O publicitário conta que o retrocesso no desenvolvimento era um medo não apenas dele, mas também da esposa. “Percebemos que ela deu uma pausa e durante um período muito grande, até novembro, não teve desenvolvimento. Foi aí que voltamos a deixar a Naya conviver e brincar com outras duas priminhas cujas famílias estavam isoladas como nós e percebemos então um avanço, principalmente na fala”, completa. Giordânio se desdobrou, inventou, conta que chegou até a costurar dois vestidos para a filha. Ampliou a leitura e junto com a esposa abusou da arte: canetinhas, tintas, pinceis, lápis de cor. “Apesar da rotina sufocante em um apartamento de 50 metros quadrados, evitávamos ao máximo deixar ela no celular ou na televisão”. Crianças aprendem com crianças Mayara Orlandi, de 31 anos, é psicopedagoga e mãe do Enzo, hoje com 3 anos. Desde o início da pandemia ela afirma que o atendimento de crianças aumentou e que os problemas se repetem, sendo similares ao que também passou em casa. “Enzo começou a frequentar a escola com dois anos, em janeiro, e em março tudo paralisou. O sonho de ver meu filho se desenvolver e o início da fase escolar foram frustrados pela pandemia. Me vi em casa com uma criança sem entender o que estava acontecendo, sem saber que não iria mais pra escola e sem conseguir comunicar e interagir como deveria”. Orlandi diz ainda que muitas crianças agora estão sendo encaminhadas pela própria escola e defende a educação em conjunto como grande aliada do desenvolvimento. “Com a pandemia as crianças deixaram de se socializar e para o desenvolvimento é de extrema importância a socialização. Crianças aprendem com outras crianças. Muitos não tiveram a fala desenvolvida como o esperado, estão apresentando um atraso considerável e falta de interesse de socializar. Crianças precisam de outras crianças para se desenvolverem e é ai que a escola faz falta, a pandemia privou nossas crianças de conviver com outras”, acrescenta a psicopedagoga. Orlandi afirma também que crianças já diagnosticadas como Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno do Défict de Atenção com Hiperatividade (TDAH), tiveram tratamentos interrompidos, afetando assim no progresso social e escolar. Para os novos casos, também consequências avaliadas pela Sociedade Goiana de Pediatria (SGP). “A pandemia pode atuar como fator ambiental para desencadear algumas vulnerabilidades genéticas de transtorno do desenvolvimento. Não é possível a pandemia causar autismo, mas pode privar estímulo que pode evidenciar uma vulnerabilidade de uma criança. O reflexo da pandemia não diminui a preocupação da intervenção. Não existe isso de deixar a criança voltar sozinha, ela precisa de ajuda profissional”, completa a vice-presidente da SGP, Ana Márcia Guimarães.Orientações para identificar necessidadesA identificação de um possível prejuízo causado pelo isolamento social imposto pela pandemia, seja na socialização, comunicação ou desenvolvimento de uma criança, deve ser feita por especialistas. Existem orientações que podem ajudar pais e familiares a observarem para decidir se é hora de buscar ajuda profissional. Quanto antes o início do diagnóstico, melhor. A fonoaudióloga Juliana Bitar diz que a avaliação de cada criança é individual, mas que existem hábitos e comportamentos que podem demonstrar alguma alteração que necessite de tratamento. Ela ressalta que, no caso da dificuldade com comunicação, o profissional habilitado para identificar algum distúrbio de comunicação é o fonoaudiólogo, que costuma ser quem costuma ter o primeiro contato com a criança. Juliana detalha que, pela dificuldade de fala, os pais costumam levar primeiro ao fonoaudiólogo, que pode encaminhar para outros profissionais caso haja suspeita de transtornos que necessitem de outro especialista. Mas ela reforça que os pais e responsáveis não podem justificar as dificuldades das crianças com base no distanciamento imposto pela doença e que é preciso estar atento aos marcos de desenvolvimento para as idades. “É preciso considerar o isolamento social, mas ele não pode ser a justificativa. É preciso observar”, diz.Entre as orientações, ela sugere que a criança que apresenta dificuldade de fala deve ser colocada em convívio com crianças com idades próximas. Juliana diz ainda que, colocada na escola e passados dois meses, se a criança não apresentar evolução da comunicação, já é hora de buscar o especialista. Além disso, os responsáveis devem observar se a criança desenvolve habilidades como observação, imitação. Ela ainda destaca que não se deve testar a criança o tempo todo, como por exemplo, ficar perguntando o que é isso ou o nome daquilo. A fonoaudióloga sugere que as pessoas que convivem com crianças que apresentam dificuldade não falem no diminutivo. “É muito mais difícil falar pezinho do que pé.” Mas entre as principais recomendações, Juliana Bitar orienta que, ao conversar com a criança, os adultos se abaixem para ficar na mesma altura. O ideal é que não estejam de máscara para que a criança veja a boca para ter modelo e fazer igual. “Deve-se falar devagar. Os adultos estão muito acelerados e isso reflete na fala, o que pode prejudicar a observação das crianças.” (Cristiane Lima)Escola pode ajudar no desenvolvimento e interaçãoIdentificar se os chamados “filhos da pandemia”, que são as crianças nascidas pouco antes ou durante a pandemia da Covid-19, possuem algum tipo de dificuldade causada pelo isolamento social, que acabou privando muitas crianças de se encontrarem com amigos e familiares pode ter ajuda da escola.A psicopedagoga Yanna Dias da Silva também é coordenadora de uma escola particular e diz que aumentaram matrículas de crianças com média de dois anos desde agosto. Em outubro, duas famílias buscaram a unidade para uma vaga no próximo semestre. Nos dois casos, crianças com média de dois anos.A empresária Angélica Santos Ecke, de 31 anos, tem duas filhas, Ana Lívia, de 8 anos e Antonella, de 2 anos. A caçula foi matriculada em agosto, mas não foi por ter identificado alguma dificuldade. Ela entendeu que estar na escola poderia ser importante para a socialização da menina. Angélica conta que a irmã foi para a creche aos seis meses de vida. “Eu trabalhava e precisava deste suporte, mas foi muito bom para o desenvolvimento dela. No caso da Antonella, ela só foi agora por conta da pandemia. Por ver a irmã indo, pedia para ir e achamos que já temos segurança para mandá-la para a escola.”Ela acrescenta que a filha perdeu muito contato com familiares durante os meses em que os casos de Covid-19 estavam mais altos. “Com o avanço da vacina, fomos nos sentindo mais à vontade para encontrar, mas não sabemos se esses meses reclusos podem ter alguma sequela lá na frente, seja para a menor ou para a maior. Mas estar na escola é um bom meio de deixá-las com outras crianças e, de fato, serem crianças, brincar e estudar.”A psicopedagoga Yanna Dias reforça que estar na escola não é só aprender a ler e escrever, mas é saúde mental e vivência. “Ficar em casa foi necessário, mas agora que existe a possibilidade de convivência, isso deve ser explorado. As relações e as formas de se relacionar que essas crianças constroem agora refletem na vida toda.” (Cristiane Lima)Olhar nos olhos, falar com calma e brincarOlhar nos olhos, falar com calma, estimular e brincar. Esses são hábitos que podem fazer a diferença no desenvolvimento das crianças que enfrentam dificuldade de socialização e comunicação. “Em muitos casos os pais perguntam por que as crianças não falam e a resposta pode ser que seja porque ninguém conversa com elas”, diz a fonoaudióloga Juliana Bitar. A especialista ainda diz que os pais precisam participar e brincar mais com os filhos. “Mas é brincar mesmo, descrever o que vai fazer.” Ela cita como exemplo quando vai dar banho, falar que vai lavar a mão, o pé. Se estiver brincando, falar onde o carrinho vai passar, onde o avião vai pousar. A fonoaudióloga ainda reforça que crianças nesta idade não devem ser expostas às telas e televisão. “Não é este tipo de estímulo que as crianças nesta idade precisam.” Ela diz entender que, com o home office forçado, muitas famílias não tiveram opção a não ser colocar as crianças em frente à TV, mas que agora já é hora de ganhar qualidade na relação e na interação com as crianças. Juliana Bitar também ressalta que, como seres sensoriais, os seres humanos aprendem com experiências, seja andando descalço, tomando banho na chuva ou pegando em superfícies diferentes. “São essas experiências que você fornece para a criança que vão formar seu conhecimento, desenvolvimento e os pais precisam encontrar meios de oferecer isso para essas crianças. Os pais precisam participar mais, brincar mais.”A psicopedagoga Yanna Dias da Silva ressalta que todas as crianças têm o próprio tempo de aprendizado e que as vivências precisam ser incentivadas. Ela cita o que os especialistas chamam de síndrome da gaiola aberta, que são as crianças que tinham interação e convivência social antes da pandemia e que, agora, preferem não voltar para a escola, por exemplo. “Os pais precisam incentivar essas experiências e a escola é um lugar que pode oferecer um pouco disso, com auxílio de professores.”Yanna Dias da Silva ainda entende que os pais, neste momento, não devem incentivar que filhos evitem contato com outras crianças. “Claro que existem casos de pessoas que, por um motivo ou outro ainda não se sentem seguras (por conta da Covid-19), mas a vacinação ampliada e a redução de casos vai nos permitir, mesmo que com as regras que são mantidas, como uso de máscaras, ter esse contato com outras crianças e aprender entre si.” (Cristiane Lima)