Inaugurado em dezembro de 2018, o Centro de Memória e Cultura (CMC) do Poder Judiciário de Goiás, instalado na cidade de Goiás, abriu nova fase para recolhimento de antigos processos que irão compor seu acervo, atendendo resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que determinou a criação do Repositório Arquivístico Digital Confiável. Cerca de 1,5 mil processos já chegaram à unidade do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO). São documentos que datam dos séculos 18, 19 e 20 até 1937, quando a sede da capital goiana foi transferida para Goiânia.Os autos que estão sob análise dos servidores são, em sua grande maioria, da comarca da cidade de Goiás, onde foram recolhidas 340 caixas, com uma média de três a cinco processos em cada. Parte estava sob a guarda da Fundação Frei Simão Dorvi. Outras 40 caixas foram enviadas pela comarca de Formosa, município do Entorno do Distrito Federal. Projeto elaborado pelo TJGO prevê que até novembro deste ano serão recolhidos antigos autos de outras 13 comarcas - Luziânia, Jaraguá, Pirenópolis, Corumbá de Goiás, Catalão, Bela Vista de Goiás, Santa Cruz de Goiás, Ipameri, Rio Verde, Jataí, Alto Paraíso, Cavalcante e Abadiânia.Idealizado pelo ex-presidente do TJGO, Gilberto Marques Filho, o CMC foi entregue oficialmente em dezembro de 2018, mas aberto ao público somente no dia 19 de janeiro do ano seguinte. No momento inicial, cerca de 130 autos processuais históricos de diversas comarcas passaram a integrar o acervo, mas boa parte sem digitalizar, trabalho agora em andamento. Muitos estão relacionados aos períodos de garimpo e de escravatura. No conjunto há também processos mais recentes, como o inventário da poetisa vilaboense Cora Coralina, de 1985, e um processo penal sobre o garimpo da bacia do Rio Vermelho, de 1988O CMC do TJGO funciona no antigo prédio do Fórum da comarca da cidade de Goiás, um edifício colonial de 1874. Ele foi construído para abrigar o Superior Tribunal da Relação, inaugurado por decreto do imperador Dom Pedro II. Mais tarde, em 1933, com a mudança da capital, o Tribunal da Relação foi transferido para Goiânia, e se tornou o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. O prédio de 1,5 mil metros quadrados, com dois pavimentos, passou a sediar a comarca local. Em julho de 2018 o Fórum foi transferido para um novo prédio possibilitando a ampla reforma para receber o CCM.A montagem do acervo teve início em 2017 quando o presidente da Comissão de Cultura do TJ-GO, desembargador Itaney Francisco Campos, hoje também presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), enviou ofício a todas as comarcas goianas solicitando apoio. De imediato, 14 responderam, encaminhando antigos processos e objetos. “O acervo documental é de grande importância e nos propicia mostrar a evolução social, política e judicial”, afirma ele.RiquezaAlém de autos judiciais históricos, o acervo conta com mobiliário, documentos diversos, objetos, indumentárias, fotografias, livros e outras peças doadas por magistrados e comarcas. Entre as famílias que fizeram doações está a do desembargador Coriolano Augusto de Loyola, que por duas vezes presidiu o TJGO, entre 1891/1899 e 1905/1914. Em 1867 ele foi nomeado por Dom Pedro II como “Juiz Municipal e de Órfãos da Capital da Província de Goyaz”. O documento oficial faz parte do patrimônio do CCM.Diretora do CMC e à frente do trabalho de catalogação e digitalização do acervo, Laylla Nayanne Dias Lopes, espera contar com o apoio das comarcas para que o projeto seja agilizado. “Queremos, efetivamente, transformar o CMC num centro de pesquisa de documentos históricos. Após esta etapa, quando estamos privilegiando os autos dos séculos 18, 19 e 20 até a transferência da capital, vamos avançar para outros momentos, como processos da época da ditadura e do acidente com o Césio-137, em Goiânia.”Autos judiciais contam passado de GO É instigante mergulhar nas histórias contadas pelos autos judiciais. “São histórias inéditas, de veracidade inquestionável”, como disse ao POPULAR em 2018 a analista judiciária Maria Lúcia Castro, pós-graduada em Arquivo, Patrimônio Histórico e Artístico Cultural. Então servidora do Fórum de Luziânia, ela foi convidada a montar a etapa inicial do CCM. Os autos narram episódios sobre disputa de pequenos objetos, casos de traição, brigas familiares, homicídios e fatos da escravatura, muitos escritos no Português arcaico.Entre os processos já digitalizados (veja quadro na página 14) estão uma ação penal de 1875, em que uma escravizada acusa seu proprietário de maus-tratos. “A paciente queixa-se que, achando-se grávida em certa occasião, soffreu uma novena de castigo tão bárbaro, atada a uma escada, que dias depois lançou a criança, já aleijada de um quarto; a qual veio a morrer por ter sido também vítima de tão deshumano trato”, diz um dos trechos. Apesar das marcas que comprovaram as agressões, testemunhas negaram os fatos e o processo foi arquivado. Outro documento trata de uma ação de apelação criminal, de 1890, de condenação à pena de Galés Perpétua, impetrada por Manoel Albino de Souza. A sanção, prevista no Código Criminal Brasileiro de 1830, determinava que os réus tinham de andar com calcetas nos pés e correntes de ferro e executar trabalhos públicos na província onde praticaram o delito. Nesse caso, a pena foi mantida.Há ainda um caso envolvendo uma estrela do cinema mudo, a atriz Joan Lowell Bowen, que atuou com Charles Chaplin no clássico A Busca do Ouro. Em 1957, ela ficou presa na cadeia pública de Anápolis, acusada de emitir dois cheques sem fundo, num total de 120 mil cruzeiros. Ela tinha chegado à cidade goiana anos antes com o marido, o capitão da marinha norte-americana Leek Bowen, seguindo os passos do programa de interiorização brasileiro criado pelo presidente Getúlio Vargas.No pedido de habeas corpus, processo que agora integra o acervo do CCM, o advogado Adahyl Lourenço Dias (e outros) afirma que a prisão “causou espécie no fôro de Anápolis: tudo às pressas, alta noite, acordando juiz, porteiro, polícia, etc, na célebre noite de São João, enquanto os lares anapolinos alegravam-se em festas joaninas, em outro local planejava-se a prisão da paciente.” Joan Lowell, presa no dia 25 de junho, foi solta no dia 16 de julho daquele ano. A ex-atriz morreu em Brasília dez anos depois. Outra figura internacional que integra um processo do acervo é o ex-presidente sírio Maouhamed Adib Chichakli, morto por um conterrâneo em Ceres em 27 de setembro de 1964. Deposto do cargo em 1954, ele procurou abrigo no Brasil depois de passar por vários países. O crime atraiu para Ceres jornalistas dos maiores veículos de imprensa do país e do exterior. Os autos, em vários volumes, narram os últimos dias de Chichakli, também considerado um ditador; o julgamento de Nawaf Ben Youssef Ghazaleh, acusado de assassiná-lo, e sua absolvição por um júri popular.No arquivo, foi anexado o livro A Fuga de um Tirano, traduzido do árabe, escrito por Fares Hanini. A obra relata as atrocidades cometidas por Chichakli quando era presidente da Síria contra estudantes contrários ao seu governo. Ele também teria sido responsável por uma matança de drusos na cidade de Assnaida, sem poupar idosos, mulheres e crianças. A perseguição sangrenta teria provocado sua queda da presidência e fuga do país. Drusos espalhados pelo mundo juraram sua morte.Nawaf, um druso, morava em Taguatinga (DF) e há informações, nunca confirmadas, de que uma rede de sírios drusos financiou o crime e a defesa de Nawaf. Ele chegou a ficar preso no antigo Cepaigo de 7 de outubro de 1964 a 15 de julho de 1968. O sírio foi absolvido em julgamento transferido da comarca de Ceres para Goiânia, morreu em Taguatinga em 2005 e seu corpo foi levado para a Síria, onde é considerado um herói. O corpo do ex-presidente Chichakli foi sepultado no Cemitério Verdes Vales, em Ceres, mas depois trasladado para Damasco, capital da Síria. Também desperta a curiosidade o inventário dos bens de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, a poetisa Cora Coralina, que morreu em Goiânia aos 95 anos, em 1985. No processo consta que Cora era viúva de Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas, com quem teve os filhos Paraguassu, Cantídio Filho, Jacintha e Vicência. Eles partilharam, de forma amigável, os direitos autorais das obras escritas pela poetisa - Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, Meu Livro de Cordel e Vintém de Cobre. Todos residentes em São Paulo, foram representados no processo pelo advogado Flávio Almeida Salles.Visitas e pesquisas são gratuitas, diz TJGOPouco mais de um ano após sua abertura para visitação, o CMC do TJGO ficou fechado ao público por força dos limites sanitários impostos pela pandemia da Covid-19. Entre março de 2020 a agosto de 2021, o imponente casarão colonial pintado de branco e amarelo do Largo do Rosário, na antiga Vila Boa, esteve com as portas cerradas. Agora, pode ser visitado de segunda-feira a sexta-feira, das 9 às 12 e das 13 às 17 horas, e aos sábados, das 9 às 13 horas. Em média, 150 pessoas têm passado pelo espaço.A diretora Laylla Lopes enfatiza que não há cobrança para acesso ao CMC e nem para pesquisa da documentação. Os pesquisadores, entretanto, devem formalizar o pedido com antecedência por meio do email cmcgoias@tjgo.jus.br.“Para aqueles que não conseguem fazer a visita no local, disponibilizamos o Tour Virtual 360º (os documentos e fotografias do tour podem ser baixados na íntegra): https://www.tjgo.jus.br/index.php/cmc-tour360’, explica a diretora.No dia 25 de agosto, mulheres de presidentes de Tribunais de Justiça de todo o país, que estarão reunidos em Goiânia, vão visitar o CMC na cidade de Goiás. CNJ definiu diretrizes para gestãoA Resolução 324 do CNJ, de 30 de junho de 2020, institui normas de Gestão de Memória e de Gestão Documental do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname). Embora Goiás tenha se antecipado ao criar o seu Centro de Memória, em 2018, terá de se adaptar às diretrizes definidas pelo CNJ. Ou seja, dentro de pouco tempo, pelo site do TJGO, qualquer pessoa poderá acessar documentos judiciais que ajudam a contar a história goiana. O Repositório Arquivístico Digital já está sendo alimentado, mas a liberação para o público externo vai depender de um maior volume de processos digitalizados. Até lá, interessados em acessar ou receber cópias da documentação que integra o acervo do CMC podem fazer solicitação por meio do email - cmcgoias@tjgo.jus.br - constando: nome completo do requisitante, CPF, número de telefone, número do processo, nome completo das partes e a motivação da solicitação. O processo será disponibilizado em até 30 dias úteis, sem custo.Leia também:- Ordem de serviço é assinada para construção dos Tribunais do Júri em Goiânia- TJ pagou mais de R$ 100 mil a 282 magistrados em junho- Processo seletivo é aberto para juiz-membro titular do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás-Imagem (1.2500510)