Uma decisão judicial recente da comarca de Rubiataba, no Vale do São Patrício, é um novo marco para a trajetória do povo tapuia que habita as terras Carretão, entre o município e Nova América, região central de Goiás. Em ação interposta pelo Núcleo Especializado em Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de Goiás (NUDH/DPE-GO), a pesquisadora Eunice da Rocha Moraes Rodrigues, de 37 anos, e seus três filhos adolescentes, poderão retificar o registro civil para incluir o nome da etnia. A sentença abre caminho para que toda a comunidade tenha o mesmo direito, em mais uma etapa da luta pelo reconhecimento da ancestralidade indígena.“Meu povo está ansioso. Logo que fui informada da decisão, corri para contar ao cacique e a notícia logo se espalhou. Todos querem saber quando poderão fazer o mesmo. É muito significativo. Não é apenas uma mudança no nome, mas sermos reconhecidos como povo indígena, que somos de fato”, disse Eunice ao POPULAR. Com a decisão, a pesquisadora passará a se chamar Eunice Pirkodi Caetano Moraes Tapuia e os filhos César Mõritu Moraes Rodrigues Tapuio, de 17, Yasmin Wa’utõmõdzahuiwē Moraes Rodrigues Tapuia, de 15, e Nuiawã Moraes Rodrigues Tapuio, de 11.Por meio da Ação de Alteração/Retificação de Assentamento do Registro Civil, Eunice também conseguiu a supressão dos sobrenomes Rocha, que ganhou ao nascer mesmo sem nenhuma relação com sua família, e Rodrigues, que adquiriu no casamento, mas, com o divórcio, decidiu retirá-lo. E o direito de somar o Caetano, sobrenome materno, do qual sentia falta em seus documentos, nos quais consta apenas o Moraes, que veio do pai. Logo que soube da notícia, Eunice mostrou euforia em vídeo publicado no Instagram. “É a minha história de vida”, comemorou. “Agora sou reconhecida pelo Estado enquanto indígena, enquanto filha da minha mãe e pertencente a um povo que luta, que resiste, que enfrenta tudo. Um povo que permaneceu sempre de pé, reconquistando sua identidade passo a passo”, diz.Na decisão, a juíza de Direito de Rubiataba, Marina Cardoso Buchdid, lembra que a Constituição Brasileira de 1988 “é um marco importante para o reconhecimento dos direitos indígenas”. Para a magistrada, indígenas são reconhecidos como os povos originários, assim como sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. “Trata-se, portanto, de uma clara positivação das peculiaridades dos povos e tradições indígenas”, define. Como Eunice possui carteira de identidade indígena emitida pela Fundação Nacional do Índio (Funai), os filhos foram reconhecidos por dedução lógica.Remanescente de várias etnias que ocuparam o território goiano, os tapuios lutam há anos por reconhecimento. Para Eunice, que é graduada em Licenciatura Intercultural para Formação e Habilitação em Linguagem pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutoranda em Direitos Humanos na instituição, o Estado está devolvendo ao grupo o que foi retirado dele, ainda nos tempos coloniais (leia na página 17).Liderança do seu povo, ela decidiu permanecer vivendo no território tapuia por considerar que ali fará a diferença para as futuras gerações.Nas terras do Carretão vivem hoje 268 pessoas, mas o antigo aldeamento chegou a abrigar 3 mil. “Temos tapuias do Carretão dentro e fora do Brasil, o que soma algo em torno de mil pessoas”, estima Eunice. Ela explica que o território possui uma organização política formada pelo cacique, pelo vice-cacique, por uma associação de moradores e por lideranças, das quais é uma delas. Durante 15 anos, antes de se dedicar ao mestrado e ao doutorado, ela foi professora na escola local, a primeira das três indígenas de Goiás, onde tem feito um trabalho consistente para a preservação do português tapuia. Origem étnica está preservada, diz defensorO defensor público Salomão Rodrigues da Silva Neto integrava o NUDH, na DPE-GO, quando conheceu Eunice, no ano passado, durante uma disciplina que fizeram juntos, ele no mestrado e ela no doutorado. O relato dela o sensibilizou. “A DPE existe exatamente para acolher pessoas em vulnerabilidade e efetivar os seus direitos. O reconhecimento estatal do nome étnico é importante porque demonstra a origem ancestral do povo tapuia. O caso da Eunice abordou também a questão feminina, porque ela desejava o nome materno em seu registro. Era uma dupla vulnerabilidade.”Salomão Neto ressalta que os direitos dos povos indígenas, em especial o autorreconhecimento do direito à personalidade, está previsto tanto na Constituição Federal e em leis nacionais, mas também em tratados e convenções internacionais, das quais o Brasil é signatário, a exemplo da Convenção nº 169/OIT. “O caso da Eunice será o parâmetro para alcançar toda a comunidade tapuia e outros povos indígenas de Goiás e não apenas os aldeados, porque ninguém perde a identidade por estar deslocado de sua comunidade.” A Funai expedia o Registro Administrativo de Nascimento de Índio (Rani) e o Registro de Identidade Indígena, mas ambos foram extintos. O documento de nascimento do povo tapuia foi feito no Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais. Uma minoria possui o RG indígena. “Pela questão do aldeamento, a gente sabe que houve uma miscigenação, mas a origem étnica permanece preservada”, lembra o defensor. Em breve, a DPE Itinerante vai aportar no território Carretão, avisa Salomão Neto, que agora coordena o Grupo de Trabalho pela Igualdade Racial. “Nele discutimos políticas públicas voltadas a comunidades indígenas, ciganas e quilombolas tradicionais para garantir direitos ainda sonegados. Origem em várias etniasPara falar do povo tapuia é preciso voltar no tempo, ao período de colonização de Goiás, que se iniciou por volta de 1592. Nessa época viviam em território goiano muitos povos indígenas e a grande maioria acabou extinta em conflitos com os bandeirantes que marcharam para o interior com o objetivo de povoar os rincões do Brasil central.A exemplo de outras regiões, o processo ocorreu ou por confronto ou por aliciamento. Os indígenas eram levados a trabalhar para os colonizadores que, ao mesmo tempo, contavam com o apoio de ações missionárias religiosas para garantir a convivência pacífica. Mas havia núcleos de resistência e isso levou o governo a criar, por volta de 1741, o sistema de aldeamentos, como meio de manter indígenas sob seu controle. Em Goiás foram criados seis deles.O Aldeamento do Carretão ou Pedro II, como chegou a ficar conhecido, entre os municípios de Rubiataba e Nova América, surgiu em 1788, junto ao Rio Carretão. Para ali foram levados índios das etnias javaé, carajá, caiapó, xerente e xavante que, ao longo dos anos, passaram por um processo de hibridação com negros e brancos, dando origem ao povo tapuia. Até meados do século 19, o Carretão resistiu com forte identidade indígena, mas, quando a região deixou de ter interesse econômico com o fim da mineração, os moradores ficaram entregues à própria sorte. Sem assistência e proteção do Estado, perderam vínculos, originalidade étnica e padrões culturais. No início do século 20 o aldeamento foi ocupado por fazendeiros com o apoio de tropas oficiais. A expansão agrícola, a partir da criação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás (Cang), hoje município de Ceres, piorou o cenário. Remanescentes do grupo original passaram a brigar pela demarcação do território, o que ocorreu em 1948, no governo de Jerônimo Coimbra Bueno. Mesmo assim, o processo de invasão continuou. A opressão e a violência levaram muitos descendentes do grupo original de aldeados a buscar outras paragens. Ficaram ali duas mulheres, uma descedente de caiapó e outra de xavante, que se casaram com negros, originando o povo tapuia. A denominação é originária do povo tupi, que a utilizava de forma genérica para mencionar outras etnias, consideradas inimigas. Para se referir àqueles que viviam no Carretão, donos de terra na região, passaram a chamá-los de tapuia, numa alusão à sua origem. Somente em 1984, com base no documento de 1948 e em função da luta pelo reconhecimento da etnia, a Funai demarcou duas glebas não contínuas, um total de 1.743 hectares, distantes seis quilômetros uma da outra, formando as aldeias Carretão 1 e 2. Os invasores só deixaram o território em 1999, após sentença do Tribunal de Justiça de Goiás. Em meio a embates com fazendeiros, ficaram de fora três dos cemitérios do aldeamento original, o que até hoje demanda briga judicial pela ampliação do território. Português Tapuia é ato de resistência Os tapuios ressurgiram no final dos anos de 1970 quando uma mulher, Olímpia, moradora do território Carretão, decidiu brigar pela identidade ancestral do seu povo. Ela foi até a Funai, em Brasília, contou a história do grupo e reivindicou assistência e proteção. Nos primeiros anos de 1980, o órgão designou a antropóloga Rita Heloísa de Almeida Lazarin para levantar o histórico do aldeamento Carretão. Rita Heloísa montou o quebra-cabeças a partir de narrativas dos mais antigos. Ela descobriu como foi o processo de hibridação, da ocupação da terra demarcada e do desmanche sociocultural e linguístico dos descendentes dos povos que ocuparam o aldeamento. Seus estudos foram fundamentais para a retomada histórica dos tapuias. Desde então vários pesquisadores têm se debruçado sobre o tema. A grande revolução veio com a instalação, em 2004, da Escola Estadual Indígena Cacique José Borges. Foi a primeira do gênero em Goiás, inaugurando uma nova forma de educação escolar indígena. A escola desempenhou papel fundamental no resgate de saberes, experiências e memórias da etnia. A matriz curricular foi elaborada com o apoio de professores das UFG e UEG. A quase totalidade dos professores é tapuia e especializada em Educação Intercultural pela UFG. Na unidade, o idioma da comunidade tem destaque. No artigo Português Tapuia: um signo de resistência indígena, publicado em 2018 na revista Porto das Letras, Eunice Tapuia explica que a língua específica do seu povo foi definida a partir das falas documentadas pela antropóloga Rita Heloísa nas terras Carretão e de moradores de Rubiataba e Nova América que constam do acervo do Atlas Linguístico de Goiás, arquivado no Laboratório da Língua de Goiás/Faculdade de Letras/UFG. A dissertação de mestrado de Israel Elias Trindade, defendida em 2009 na UFG, contribuiu para revelar a especificidade do falar tapuia. Eunice identificou um “espalhamento da nasalidade, frente às vogais do português”. Ela e Adriana Silva, também da comunidade do Carretão, fizeram um inventário lexical transformado no Glossário Tapuia, que integrou o trabalho de conclusão do curso de licenciatura em Educação Intercultural da UFG apresentado por Adriana em 2012. ENTREVISTA - Eunice Pirkodi Caetano Moraes Tapuia“O Estado está me devolvendo o que tirou dos meus ancestrais”Por que a mudança do sobrenome? Nós já sabemos quem somos, de onde viemos e onde estamos. O que estamos buscando é o reconhecimento pelo Estado. Antes, para fazer o registro de nascimento, o tapuia pedia um fazendeiro para ir ao cartório. Foi assim que nossos velhos foram registrados. Posteriormente, os nossos iam aos cartórios, mas nunca com fidelidade em relação à data de nascimento ou de sobrenome. No meu caso, por exemplo, Eunice da Rocha Moraes Rodrigues, o último veio com meu casamento. O Rocha, nem meu pai e minha mãe tinham esse sobrenome. Eram muitas as irregularidades. Quando teve início o movimento para fortalecer a identidade do povo tapuia?Após o surgimento da Escola Indígena do Carretão, em 2004, nosso povo passou a trabalhar a identidade. Tomamos consciência de que não bastava saber quem éramos e sermos reconhecidos, mas precisávamos do nome do nosso povo no documento. Tentamos por várias vezes na Funai. Na época, quando ainda havia a delegacia em Goiânia, o órgão fazia uma carteirinha de identidade indigena. Hoje não faz mais o RG indígena. Poucos tapuias, como eu, conseguiram. Sempre cobramos da Funai e não tivemos resposta. Como chegou à Defensoria Pública?Eu fui para Goiânia cursar o mestrado e no ano passado entrei no doutorado. Foi quando conheci o defensor público Salomão Rodrigues, que ficou curioso sobre nossa história. Contei a ele do anseio do nosso povo em colocar o sobrenome indígena em nosso documento de identidade. Ele se ofereceu para nos ajudar, mas me explicou que como meu caso era específico, faríamos primeiro esse processo e, após, para todo o povo. Qual a importância da decisão para o povo Tapuia?Somos alvos de deboche quando falamos que somos indígenas porque não temos o fenótipo estereotipado. O fato de termos um documento em que o Estado reconhece quem somos é muito importante porque nos dá aquilo que nos foi tirado. O aldeamento do Carretão foi feito para que deixássemos de ser indígenas, para tirar a nossa identidade. Todas as conquistas anteriores foram no coletivo - o território, a língua materna, a primeira escola indígena no estado de Goiás. Agora, com o nome no RG, parte para o individual. Eu sou Eunice Tapuia e meu documento diz isso. O Estado brasileiro está me devolvendo o que tirou dos meus ancestrais. Por que continua vivendo no Carretão?Estar no Carretão é estar entre os meus. É onde sinto que faço a diferença. Trabalhei como professora e hoje sou pesquisadora, mas além disso sou uma mulher liderança do meu povo. A pauta feminista dos povos originais não é trabalhada. Temos muito o que avançar, o que conquistar. Tenho trabalhado e estudado para me tornar uma referência para as mulheres tapuias e de outras etnias. Se para uma mulher ocupar lugares masculinos é difícil, imagine para uma mulher indígena. Quero abrir caminhos. As minhas ancestrais foram guerreiras e lutaram para que tivéssemos nome, identidade e território. Quero dar seguimento a tudo o que elas fizeram para que no futuro possa deixar algo para as mulheres do meu povo, entre elas minha filha.