Em meados de 2020 Nadja Mara Alves da Silva dos Santos, de 31 anos, estava na expectativa da chegada do segundo filho. Ela vinha sendo acompanhada pela doula Carol Glória, com quem dividia a ansiedade e os temores de um novo parto, dois anos após o nascimento da primogênita. O que era para ser um parto normal, a opção da pequena empresária, se transformou em momentos de angústia e incertezas. Sob a justificativa de restrições impostas pela pandemia da Covid-19, a unidade pública de saúde, ligada à Prefeitura de Goiânia, barrou a presença da doula, a pessoa preparada para oferecer o conforto emocional que Nadja esperava.A empreendedora conta que Lucas, o segundo filho, nasceu de parto cesáreo em agosto, depois de muita discussão na maternidade. “Eu apresentei um plano de parto, a doula entraria comigo, mas me disseram que só poderia entrar um acompanhante. Lógico que optei pelo meu marido. Foi frustrante e me abalou psicologicamente. A doula estava me acompanhando havia meses. A gente idealiza, se prepara e na hora tudo é diferente,” detalha ela. Em Goiânia, Nadja não tem sido a única a ser obrigada a dispensar a companhia da doula durante o parto.Diretora geral da Associação de Doulas do Estado de Goiás, Michele Oliveira estima que de 170 a 180 profissionais estejam na ativa em Goiás, 120 delas na capital. A entidade, que surgiu em 2017, trabalha para o reconhecimento da atividade e pelo respeito às legislações já existentes que a protege, mas as reclamações nesse sentido, segundo ela, são recorrentes e cresceram muito com a pandemia. “Algumas maternidades privadas não permitem a entrada de doulas no centro cirúrgico, fato que ocorria mesmo antes da Covid-19, mas algumas públicas municipais nos barraram com a pandemia. Na Maternidade Nascer Cidadão, no Jardim Curitiba, como não pude acompanhar uma gestante, fiquei passando orientações da janela”, contaNo dia 28 de maio a direção da Maternidade Dona Iris, na Vila Redenção, que, como a Nascer Cidadão, pertence à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia, suspendeu oficialmente o acesso de doulas, “exceto nos casos em que a paciente a escolhe como acompanhante,” conforme o comunicado. Michele Oliveira diz que foi surpreendida com a decisão “porque não abriram diálogo, não nos deram oportunidade para dizer como lidar com isso”. Ela lembra que doula e acompanhante não são a mesma coisa e que ambos são amparados por lei.A grande maioria das doulas acompanha gestantes em maternidades públicas. Michele Oliveira explica que isso ocorre pela excelência do tratamento, pelo respeito à mulher que decide ter um bebê de forma humanizada, de parto natural. “Somos uma ponte, que facilita o processo para a mulher, para seu acompanhante e pode até auxiliar a equipe técnica que, pela demanda, não consegue atender a necessidade física e emocional de cada mulher.” A diretora da Associação de Doulas lembra que o suporte proporcionado por elas nos centros cirúrgicos traz benefícios comprovados cientificamente.“O sentimento é de indignação e de tristeza porque estão nos impedindo de trabalhar, embora existam leis que nos protegem. É algo muito cruel com a mulher que tem o direito de escolher com quem quer ficar na equipe multidisciplinar. É uma preparação que leva meses, durante a gestação, depois ela fica à mercê,” reclama Tatiana Cruvinel. A doula lembra que dentro do Plano Nacional de Imunização (PNI) elas foram reconhecidas como profissionais de saúde, por isso vacinadas. “A gente se cuida, sabemos dos riscos e o que é preciso fazer.”A estudante Marília Aguis Barcelos, de 26 anos, está com 38 semanas de gestação do primeiro filho. Ela se programou para dar à luz na Maternidade Dona Iris, mas agora teme não ter a companhia de sua doula, Tatiana Cruvinel. “Estou vacinada, ela também, assim como os profissionais da equipe técnica. A suspensão não se justifica quando liberam eventos e a gente assiste tantos bares abertos. Nos tiraram o direito de ter ao nosso lado uma pessoa em quem confiamos. É frustrante!.” Profissional recorre à Justiça para resguardar o direito ao trabalhoEm maio do ano passado, quando a pandemia do coronavírus (Sars-CoV-2) trouxe restrições em diversos cenários, a doula Juliana Rodrigues buscou a Justiça para resguardar o direito de trabalhar dentro dos hospitais e conseguiu uma liminar. “O Município de Goiânia tinha 30 dias para recorrer, mas não o fez. Hoje sou praticamente a única doula que pode acessar as salas de parto das maternidades públicas”, afirma. Entretanto, algumas ainda impõem restrições. “O objetivo do nosso trabalho é fazer com que a gestante tenha uma experiência a mais humanizada possível e ela tem esse direito”.A nutricionista Laura Rezende, de 29 anos, é um exemplo disso. “Desde antes de engravidar optei pelo parto normal e pelo acompanhamento de uma doula por entender que seria menos traumático porque ela ajuda na redução da dor.” A nutricionista escolheu a Maternidade Dona Íris para dar à luz a Luísa e não se arrependeu. “Foi um parto muito bonito, com muito respeito. Cheguei à maternidade com dois centímetros de dilatação e saltou para seis, sem que eu percebesse. Juliana foi me guiando, ela sabia o que fazer em cada momento, foi me motivando. Sem ela eu não teria parto normal, teria desistido.”Encorajamento, conforto e apoio emocionalAs doulas surgiram a partir dos anos de 1970 após uma pesquisa realizada pelos médicos pediatras norte-americanos John Kennell e Marshall Klaus na Guatemala. Eles coletavam dados sobre a formação do vínculo entre mãe e recém-nascido logo após o parto. Para o estudo convidaram Michelle, estudante de Medicina que falava espanhol, a pessoa responsável pelo contato com as gestantes com quem pegaria o termo de consentimento. Envolvida emocionalmente com as mulheres, a jovem passou a acompanhá-las no pré-parto e durante o parto, segurando suas mãos, confortando-as.Os pesquisadores observaram que os partos das mulheres acompanhadas por Michelle foram mais rápidos e com menor intervenção obstétrica. Curiosos, treinaram três mulheres da comunidade para fazer o mesmo papel, de apoio e encorajamento às parturientes. Kennell e Klaus as denominaram doulas, termo que já tinha sido empregado anteriormente pela médica antropóloga Danna Louise Raphael, pesquisadora da amamentação, em sua tese de doutorado, mais tarde transformada no livro The Tender Gift: Breastfeeding. Na obra, Danna traduz o termo doula, do grego, para serva. As três mulheres treinadas como doulas pelos pesquisadores acompanharam 186 gestantes no primeiro parto. Outras 279 parturientes não contaram com ninguém ao lado. O primeiro grupo apresentou resultados surpreendentes: redução de 50% no tempo de trabalho de parto, de 58% nas taxas de cesáreas, de 84% no uso de ocitocina sintética (medicamento para promover a contração uterina) e de 51% nas complicações perinatais.A partir daí as doulas ganharam o mundo e aprimoraram as técnicas. Hoje elas atuam após passar por treinamento. Sua função é oferecer conforto, encorajar, dar apoio emocional e técnicas não medicamentosas, como exercícios ou massagens para aliviar a dor. ‘Doula não faz parto, faz parte’No Brasil ainda não existe uma lei federal amparando o exercício profissional das doulas. O projeto de lei nº 8.363/2017, de autoria de Erika Kokay (PT-DF), com este objetivo, está em tramitação na Câmara Federal. Em 2017, durante audiência pública, médicos e doulas debateram possíveis interferências nos procedimentos que seriam de responsabilidade médica. Mas a psicóloga Eleonora Moraes, que atua como doula desde 2004 e mantém no YouTube o canal O Despertar do Parto, enfatiza: “Doula não faz parto, faz parte!”.Desde 2013 a função é regulamentada pelo Ministério do Trabalho na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), dentro da categoria Tecnólogos e técnicos em terapias complementares e estéticas. “Durante o trabalho de parto as mulheres buscam a segurança técnica que médicos e enfermeiros proporcionam, mas precisam também do acolhimento emocional para enfrentar angústias e medos. Dentro da maternidade, no processo do parto, os profissionais de saúde não têm tempo para isso”, afirma Michelle, da Associação de Doulas. Em Goiás, a presença das doulas nas maternidades no período do parto é amparada na Lei nº 20.072, de maio de 2018. Em Goiânia, a Lei nº 9.795 de abril de 2016, também diz que as maternidades vinculadas ao serviço público “ficam obrigadas a permitir a presença das doulas e, durante todo o período de trabalho de parto e pós-parto imediato, sempre que solicitadas pela parturiente”. Em âmbito federal, o projeto de lei nº 376, de 2019, de autoria do ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT-SP), também prevê a presença de doulas em casas de parto públicas ou privadas, mas ainda tramita na Câmara.Gestante tem direito garantidoNa capital, as maternidades da rede municipal de saúde estão sob a gestão da Fundação de Apoio ao Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (Fundahc). Em nota, a Fundahc confirma que em razão da pandemia o Comitê de Gerenciamento de Crise do Hospital e Maternidade Dona Iris decidiu limitar a presença de apenas um acompanhante para as gestantes. “A parturiente pode escolher entre a doula ou outra pessoa de sua confiança para permanecer com ela durante todo o período de internação.” Conforme a nota, a unidade é considerada de alto risco, por isso a decisão do comitê.Mas a Associação das Doulas lembra que doula não é acompanhante, papel que cabe a um familiar, normalmente o marido da gestante, cuja presença na maternidade está resguardada pela Lei nº 11.108/2005. “O acompanhante é o apoio afetivo da mulher, mas não sabe o que fazer tecnicamente para tentar um alívio da dor ou favorecer o trabalho de parto porque não recebeu treinamento para isso”, explica Michele Oliveira.A Fundahc considera a Nascer Cidadão uma maternidade de baixo risco e, por isso, segundo sua assessoria, “as pacientes têm direito, além de um acompanhante, a uma doula a sua escolha durante a internação”. Para isso é necessário fazer um cadastro prévio e assinar um termo de consentimento sobre as regras da unidade. Esse cadastro pode ser feito de segunda a sexta, das 8 às 17 horas. Mas, a presidente da Associação de Doulas disse ao POPULAR que isso não confere. “Recebi um e-mail da Nascer Cidadão informando que a gestante teria de escolher entre a doula e o acompanhante.”Para Michele Rodrigues, informações desencontradas são recorrentes. “Cada equipe fala uma coisa diferente. Não sabemos como lidar com essa situação. A nossa orientação às doulas é que elas deixem as gestantes alertas sobre a possibilidade de ocorrer a proibição e isso é uma realidade nas duas maternidades mais escolhidas por elas.” A Secretaria Estadual de Saúde (SES) explica que atendendo recomendações do Ministério da Saúde e de Associações Médicas, a circulação de pessoas deve ser restringida nas salas de parto durante a pandemia, mas a orientação não atinge as doulas.“O profissional que atende a gestante deve orientá-la sobre os riscos de contaminação. Entretanto, deve também garantir que seus direitos sejam mantidos, incluindo a presença de acompanhante e da doula, caso a mulher requeira essa profissional”, diz a SES em nota. A pasta informa ainda que em conjunto com a UFG e com a Associação de Doulas promoveu um treinamento de biossegurança para Covid-19 para que essas “profissionais pudessem continuar exercendo sua função, respeitando os protocolos sanitários.”-Imagem (1.2262393)