A pedido de movimentos sociais, o Ministério Público de Goiás (MP-GO) criou um grupo de trabalho para tentar encontrar soluções e garantir o direito de moradia digna para mais de 1.200 famílias, cerca de 5 mil pessoas, que vivem em sete ocupações urbanas na região metropolitana de Goiânia. Conduzido pelo Núcleo Permanente de Incentivo à Autocomposição (Nupia), o grupo espera encontrar caminhos, por meio do diálogo, para que até outubro, quando termina o prazo estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que proíbe despejos, esta população não seja alvo de ações violentas e esteja inserida em políticas públicas.“Não podemos esquecer da nossa mácula histórica que foi a desocupação do Parque Oeste Industrial. Eu trabalhei naquele episódio e tentamos, por todos os meios, evitar a desocupação daquela forma. Hoje existem protocolos garantidores de um mínimo de dignidade”, afirma o promotor de justiça, Márcio Lopes Toledo, que vai conduzir o grupo. Ele sabe que o tempo é curto e as situações são complexas, mas pretende desenvolver o trabalho, sem ferir os direitos constitucionais. “Nós acreditamos na distribuição da justiça de forma mais tranquila, para resguardar os direitos, sobretudo humanos.”Em fevereiro de 2005, cumprindo ordem judicial, 1.800 homens da Polícia Militar entraram numa área privada na região Oeste de Goiânia que tinha sido ocupada nove meses antes por 3 mil famílias. O episódio ficou conhecido como um dos mais violentos da história da capital. Duas pessoas morreram, 16 ficaram feridas, uma delas acabou paraplégica, e cerca de 800 foram presas. Barracos e casas de alvenaria foram destruídos em poucas horas. As famílias ficaram dois meses alojadas em ginásios antes de serem transferidas para locais sem nenhuma infraestrutura.O grupo de trabalho no MPGO nasceu a partir da atuação do Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno e do Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos. “Durante a pandemia conseguimos evitar 12 despejos em Goiás. É uma situação gravíssima porque o momento é de desemprego, as famílias estão no campo da miséria, vivendo insegurança alimentar e nutricional e não conseguem pagar aluguel”, relata Ângela Cristina, do Comitê Dom Tomás Balduíno. O pedido de intervenção foi acatado pela subprocuradora-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Laura Maria Ferreira Bueno, que articulou uma reunião com diferentes atores envolvidos no tema.Além de representantes dos movimentos sociais e do MPGO, estiveram no encontro no dia 16 último integrantes da Defensoria Pública Estadual (DPE) que tem atuado para evitar desocupações durante o período de emergência sanitária; do Poder Judiciário; da Procuradoria Geral do Estado (PGE); das Procuradorias Municipais de Goiânia e Aparecida de Goiânia e da Agência Goiana de Habitação (Agehab). Todos os presentes concordaram com a criação do grupo de trabalho visando a soluções autocompositivas antes de 31 de outubro, novo prazo da medida cautelar - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828 - definida pelo STF.“Foi uma reunião importantíssima, a primeira que conseguimos com as autoridades para esse debate, apesar do nosso esforço”, enfatiza Ângela Cristina, do Comitê Dom Tomás Balduíno. Ela explica que Goiás foi identificado como um estado emblemático em notificações de despejo e por isso foi escolhido para ser visitado, em agosto, por uma missão do Conselho Nacional de Direitos Humanos, do Fórum Nacional de Reforma Urbana e por membros da campanha nacional Despejo Zero. A comitiva irá em algumas ocupações na região metropolitana e fará um relatório a ser entregue às autoridades. O grupo de trabalho do MP vai receber os membros da missão.Inicialmente, o grupo vai analisar, separadamente, a situação de sete ocupações urbanas, embora os movimentos sociais tenham apresentado também um levantamento de sete rurais. Essas, no entanto, não serão verificadas de imediato. “Das sete urbanas, apenas uma não está judicializada, com decisão de despejo. As famílias estão em situação de vulnerabilidade, principalmente aquelas que ocupam áreas privadas. Precisamos tratar esses casos com absoluta prioridade, visando a proteção dessas pessoas e a garantia do direito da propriedade, como está previsto na Constituição”, afirma Márcio Toledo.Para o promotor de Justiça, não é mais possível permitir que o nível de violação de direitos humanos ocorrido no Parque Oeste Industrial volte a se repetir. “O que presenciamos foi um grande equívoco. Temos de aprender com os erros históricos. O que não conseguimos naquela época, estamos tentando fazer agora, que é criar um espaço de diálogo e de autocomposição.”Ordens de despejo estão suspensasEm junho de 2020, com a emergência sanitária instalada no Brasil em razão da pandemia da Covid-19, organizações sociais se uniram para criar a campanha nacional Despejo Zero - Em Defesa da Vida no Campo e na Cidade. O movimento, com ramificações por vários estados, entre eles Goiás, evitou o despejo de milhares de famílias vivendo em situação de insegurança. Em junho de 2021, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, concedeu liminar para suspender por seis meses as desocupações nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol). Ficaram suspensas as ordens de despejo de áreas ocupadas antes de 20 de março de 2020, quando foi declarado o estado de calamidade pública no País. Em outubro de 2021, a Lei Federal 14.216/2021 suspendeu as ordens de remoção e despejo até 31 de dezembro daquele ano, apenas para imóveis urbanos. No encerramento do período, o ministro Barroso prorrogou o prazo até março de 2022 e incluiu os imóveis rurais. Em março último, nova liminar estendeu o prazo até junho e no dia 30 de junho, Luís Roberto Barroso prorrogou até 31 de outubro deste ano a suspensão de despejos e desocupações de acordo com os critérios previstos na Lei 14.216/2021. Na decisão, o ministro ressalta que a nova data determinada evita qualquer superposição com o período eleitoral.Para Barroso, é necessário estabelecer um regime de transição para o tema. Ele registrou que está em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1.501/2022, com o objetivo de disciplinar medidas sobre desocupação e remoção coletiva forçada. “É recomendável que esta Corte não implemente desde logo um regime de transição, concedendo ao Poder Legislativo um prazo razoável para disciplinar a matéria”, disse o ministro.PL 1.501/2022Em tramitação na Câmara Federal, o PL 1.501/2022, de autoria da deputada Natália Bonavides (PT-RN), estabelece os procedimentos que devem ser adotados pelo poder público antes de autorizar o despejo ou a desocupação de pessoas de imóveis urbanos ou rurais, públicos ou privados. As medidas valem para as famílias beneficiadas pela Lei 14.216/21 e pela decisão do STF.Pela proposta, nenhuma medida de remoção ou desocupação forçada, administrativa ou judicial, será cumprida sem que o poder público tenha reassentado as pessoas atingidas para locais adequados, com acesso à educação, saúde, trabalho, transporte, energia e água potável. O PL também determina que as três esferas do poder público (União, estados e Distrito Federal, e municípios) deverão assegurar o direito à moradia às pessoas afetadas por ordem de despejo ou reintegração de posse, priorizando a permanência nos locais e a regularização fundiária.Em Goiás, com o apoio da DPE, os movimentos sociais têm buscado apoio da Assembleia Legislativa e da Câmara de Vereadores de Goiânia. Em ambas as casas foram apresentadas minutas que basearam projetos de lei com o objetivo de criar o Protocolo Unificado para Remoções. “O protocolo não é um programa que gera despesas e não afeta as competências do Poder Executivo, mas tenta garantir que várias famílias que venham a ser afetadas nos processos de remoção possam ser acolhidas dentro dos diversos contextos humanitários”, esclareceu na reunião no MP-GO, o defensor público Gustavo Alves de Jesus. O juiz Alex Alves Lessa, que coordena o Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, esteve presente e parabenizou a iniciativa do MP. Ele se comprometeu a esclarecer a proposta aos magistrados que atuam nos processos judiciais das áreas em questão, atendendo deliberação do Conselho Nacional de Justiça para assegurar dignidade, caso seja necessária a desocupação. Ângela Cristina, disse ao POPULAR que recentemente um magistrado decidiu pela reintegração sem se ater ao fato de que a ADPF 828 foi prorrogada e sem chamar a DPE para defender as famílias em situação de vulnerabilidade. Conflitos devem ser evitados, conforme prevê resoluçãoNos últimos dois anos, apesar de todas as imposições legais, famílias que buscaram refúgio em ocupações urbanas e rurais enfrentaram ameaças de forças policiais. Um drama que se repetiu com ou sem mandado judicial. Para Ângela Cristina, a expectativa com a criação do grupo de trabalho originado no MP-GO é de que, a partir de agora, sejam respeitadas a Recomendação Nº 90/21, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Resolução Nº 10/18, do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH).O CNJ, na Recomendação 90, de 3 de março de 2021, orienta aos órgãos do Poder Judiciário “a adoção de cautelas quando da solução de conflitos que versem sobre a desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais durante o período da pandemia do coronavírus (Sars-CoV-2)”. E que esses verifiquem se estão atendidas as diretrizes estabelecidas na Resolução 10/18 do CNDH, que tem representação paritária do poder público e da sociedade civil.Em outubro de 2018, o CNDH, ao publicar a Resolução 10, elencou uma série de diretrizes, entre elas que, em caso de necessidade de remoção, que não sejam usadas a força, a violência física, o constrangimento ilegal e apropriação de bens. “A falta de uma política habitacional adequada e permanente leva a um contingente significativo de pessoas a ocuparem áreas abandonadas ou precárias ou de preservação permanente ou de risco nas cidades. É onde ocorrem os despejos e as violações ao direito humano à moradia digna”, explica o CNDH na exposição de motivos.Vulnerabilidade e insegurança alimentar Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição brasileira reconheçam que moradia é um direito fundamental do cidadão, o Instituto de Pesquisa Econômico Aplicada (Ipea) estima que o déficit habitacional do País seja de 8 milhões de moradias. Em Goiás, levantamento divulgado em maio de 2021 pelo Instituto Mauro Borges de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (IMB), vinculado ao governo estadual, aponta um déficit de 150 mil moradias, cálculo baseado nos dados do Cadastro Único (CadÚnico) 2020.Em Goiânia, pelo levantamento do IMB, o déficit habitacional atinge 24.344 famílias. Para Ângela Cristina, do Comitê Dom Tomás Balduíno, este número é subestimado porque muitas famílias não estão inscritas no CadÚnico, um conjunto de informações sobre famílias em situação de pobreza e extrema pobreza utilizado pelos governos para implementar políticas públicas.É o caso da idosa Silvéria, de 108 anos, que vive na ocupação Beira da Mata, em Aparecida de Goiânia, desde que ela surgiu há um ano. Toda a comunidade, formada em sua maioria por pessoas que trabalham com reciclagem, sofre de grave insegurança alimentar. Num universo de 56 famílias, há mais de cem crianças. Sete delas estão na casa do líder da ocupação, Dione Ferreira dos Santos, de 25 anos. Pedreiro, ele quebrou o pé em quatro lugares e ficou desempregado. “Minha mulher tinha quatro filhos e nós dois, outros três, o que eu fazia não dava nem para comer.”O promotor de Justiça Márcio Toledo lembra que na época do Parque Oeste Industrial um dos principais argumentos eram de que existiam aproveitadores. “Para nós essa é uma discussão secundária. Se a pessoa está ali numa condição de risco é porque de fato precisa, mas vamos estudar caso a caso e fazer um levantamento dessas famílias.”Na ocupação Nova Canaã, ao lado do conjunto Vera Cruz 1, em Goiânia, grande parte dos núcleos familiares é formada por mães sozinhas e idosos. Lá vive Francisco Pereira de Souza, de 74 anos, um ex-caminhoneiro que perdeu a mão direita num acidente e ficou sem condições de dirigir. Hoje ele tenta ajudar nas despesas do barraco onde mora com a companheira Miriam Silva, mãe de uma adolescente, recolhendo material reciclável. O que Miriam recebe como operadora de caixa é insuficiente para garantir o sustento da família. Leia também:- Crise lota restaurante social em Goiás- Fome de alunos faz aumentar demanda de comida nas escolas públicas de Goiás- Preços de alimentos do dia a dia sobem até 172% em Goiânia-Imagem (1.2497029)-Imagem (1.2497013)-Imagem (1.2497014)