Atualizada em 14.06 às 9h55.Antônio Maria dos Santos, de 40 anos, ainda comemora. O que em julho de 2019 parecia uma ousadia sem tamanho, foi transformado no final de maio na grande oportunidade na vida do ex-presidiário, que há quase dois anos sobrevivia de pequenos ofícios. Naquele mês, ele escreveu uma carta ao então juiz de Direito da comarca da cidade de Goiás Luiz Henrique Galvão de Lima, solicitando ajuda. Já não suportava mais o espectro do passado e o peso do preconceito que retiravam dele a chance de conseguir uma vaga no mercado de trabalho. A sobrevivência e a dignidade tinham pressa.O magistrado decidiu integrá-lo ao projeto Começar de Novo, criado em 2009 pelo Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) por determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que visa a reinserção social de presos egressos do sistema carcerário e de cumpridores de medidas e penas alternativas. Antônio passou a trabalhar no Fórum da antiga capital na limpeza e no arquivo. Em maio último, como quitou a dívida com a Justiça, era preciso liberar a vaga no projeto para outro reeducando e buscar novamente o mercado de trabalho. Mas os esforços empreendidos no Começar de Novo foram reconhecidos. Desde o dia 1º deste mês, Antônio trabalha, com carteira assinada, numa empresa de serviços que atende o Centro de Memória e Cultura do Poder Judiciário, na cidade de Goiás.Antônio ficou quase dez anos encarcerado na antiga capital depois de, aos 18, participar, com um amigo, de um assalto que culminou na morte da vítima. Até ali a vida foi bruta. Ele estava com cinco anos quando a mãe abandonou cinco filhos com o pai na zona rural. Pensando no sustento e na educação das crianças, o agricultor foi para a cidade vender picolé. Mas nem tudo saiu como o planejado. O menino que saiu cedo de casa para engraxar e vender picolé para ajudar o pai, também abandonou a escola e se envolveu com a delinquência.“A prisão tirou muita coisa de mim, tirou minha juventude”, disse Antônio ao POPULAR. Na cadeia perdeu os dentes porque tinha vergonha de se apresentar no posto de saúde algemado. “Era muito triste chegar daquele jeito e encontrar pessoas conhecidas.” Quando progrediu de regime e alcançou as ruas fez bicos até ser contratado em uma olaria. Trabalhou ali durante dez anos, mas a empresa fechou e ele voltou a enfrentar o preconceito. “Sempre me pediam atestado de antecedentes criminais e numa cidade pequena todos se conhecem.”Temendo o pior por não pagar a pensão da filha de 8 anos que vive em Uberlândia (MG), Antônio foi convencido pela companheira Kênia Borges a elaborar a carta ao juiz. “A história dele é muito sofrida. Todo mundo merece uma segunda chance. Quando a gente começou a namorar, há seis anos, me criticaram, mas ele só precisava de carinho e compreensão”, afirma a funcionária pública. Ele encontrou amparo não somente em Kênia, mas também no Fórum e no Centro de Memória, que o indicou para a vaga.Diretora da unidade do Poder Judiciário, Laylla Nayanne Dias Lopes Vilarinho explica que a empresa pediu indicações e ela logo se lembrou de Antônio, pelo carinho e respeito que todos do Fórum dedicavam a ele. A inspiração veio de uma frase que ela gosta muito: “A pena, se não propriamente sempre, em nove de cada dez casos não termina nunca. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, mas os homens não”, extraída do livro As Misérias do Processo Penal, de Francesco Carnelutti.Antônio sentiu na própria pele a ausência do perdão na sociedade, mas não desistiu. Quando estava no Começar de Novo fez a prova do programa Educação para Jovens Adultos (EJA) e foi matriculado na oitava série. Este ano conclui o ensino médio e já sonha com uma faculdade. “Eu recebi uma grande oportunidade, o pessoal me ajudou muito. Tenho de dar valor.” Kênia está orgulhosa do companheiro. “Ele mudou a história de sua vida. Eu apenas dei um empurrão.”Em Goiás, 4,7 mil de 22 mil presos têm alguma atividade laboralA Diretoria-Geral de Administração Penitenciária (DGAP) informa que as diretrizes da ressocialização da população carcerária são definidas no Plano Estadual pelo Trabalho e Renda e seguem o Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Segundo o órgão, dos cerca de 22 mil custodiados do sistema penitenciário, sejam provisórios ou que cumprem pena nos regimes fechado, semiaberto e aberto, 4.774 estão empregados. A maior parte, 2.441, trabalha dentro do cárcere.As vagas de trabalho são conquistadas através de parcerias com agentes diversos, além do Poder Judiciário. Prefeituras, empresas privadas e outros públicos contratam essa mão de obra. “Os presos que trabalham recebem remissão na pena. A cada três dias de trabalho, reduz um dia na pena, conforme a Lei de Execução Penal. Cerca de 1.162 presos, além da remissão, recebem remuneração”, explica a DGAP.Cerca de dez empresas operam em unidades prisionais de Goiás, após seleção por chamamento público. A grande maioria funciona dentro do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, mas também há empresas nas unidades prisionais de Goianésia e Rio Verde. A atividade principal é o artesanato, com 2.521 presos trabalhando, seguida serviços gerais (397) e confecção (286). De acordo com a DGAP, a reincidência na criminalidade dos presos que estão nos projetos de ressocialização gira em torno de 10 a 12%.“Onde fui condenado, hoje tenho mesa de escritório”Por iniciativa do Tribula de Justiça (TJ-GO), Goiás é um dos Estados pioneiros na ressocialização de condenados. Os atos iniciais ocorreram em 1996 e em 2001 vieram as primeiras inserções no mercado de trabalho por força de convênio com a Secretaria de Segurança Pública. João Bertino Nunes Neto, de 43, é personagem chave nesse processo. Há quase três anos no Começar de Novo, ele hoje é o homem de confiança do coordenador do programa, Edgar Silva. “É o meu porta-voz com os demais, atua como supervisor. Tudo o que precisamos resolver com os reeducandos, passa por ele”, afirma Edgar.Atualmente o Começar de Novo conta com cem condenados dos regimes aberto e semiaberto ocupando funções vinculadas ao Judiciário em muitas das 156 comarcas goianas. A expectativa é de que outras 50 vagas surjam nos próximos meses. Em Goiânia, Anápolis e Aparecida de Goiânia recebem remuneração de R$ 1.518,00, vale-transporte e vale-alimentação. Nas demais comarcas não é oferecido o vale-transporte. “Nosso histórico não mostra casos de recaída no crime. Como os selecionados possuem habilidades porque já trabalhavam antes de cometerem crimes ou dentro da prisão, alguns deixam o programa porque conseguem uma melhor colocação”, explica Edgar Silva.O programa mudou radicalmente a vida de João, que ficou preso na Penitenciária Odenir Guimarães (POG) durante 16 anos, condenado por assalto. “Eu acreditei que poderia ser melhor. O programa socializa em tudo, na vida emocional, financeira e educacional. Quem não apresenta frequência de curso não fica no Começar de Novo. Eu costumo dizer que, no lugar onde fui condenado, hoje tenho uma mesa de escritório.” Na condicional, ele não somente colabora com Edgar Silva, como também atua ativamente todos os dias no setor de manutenção do TJGO antes de seguir para o lar que construiu com a primeira namorada, Polyana, com quem tem um casal de filhos.-Imagem (1.2267229)