Em dez anos, os cursos naturais de água em Goiânia (rios, ribeirões e córregos) deixaram de cobrir 56 hectares (ha) de superfície, o que representa uma redução de 77%. Em 2011, a capital tinha 72 ha de área coberta por água natural, e esse total reduziu para apenas 16 ha, de acordo com as medições feitas via satélite pela organização MapBiomas, que monitora as mudanças ambientais de todo o País, de 1985 a 2020.Esta década analisada se dá por ocorrer justamente após a criação do reservatório João Leite, que elevou a área coberta na cidade, mas de maneira não natural. Para especialistas, a criação de barragens tem viés econômico importante, mas não se apresenta como ambientalmente viável.A geógrafa e professora da Universidade Federal de Goiás, Karla Maria Silva de Faria, afirma que a redução dos rios, ribeirões e córregos em Goiânia é perceptível e visível, ocorrendo pelo processo de urbanização da cidade.“Era possível ter feito diferente, mas o padrão de ocupação feito no passado se torna nesse confinamento dos corpos hídricos. Passa pelo processo de impermeabilização, que diminui a área de recarga e vai reduzindo a vazão e a lâmina d’água”, explica. Ela cita como exemplo as obras de canalização de córregos como o Botafogo e o Cascavel.Karla ressalta que essas construções servem apenas para o fluxo de veículos e ocorrem em regiões que tiveram um processo avançado de urbanização, ou seja, a necessidade das marginais ao longo dos leitos é para o escoamento de carros. No entanto, ela afirma que essas obras de canalização acabam com o leito dos corpos hídricos e não permite nem mesmo o crescimento de mata ciliar e macrofauna.O que é diferente quando se faz uma retenção, como no caso dos lagos existentes em parques. O Córrego Botafogo tem retenção no Jardim Botânico, no Setor Pedro Ludovico, enquanto que o Cascavel tem criado uma lagoa no parque de mesmo nome, no Setor Jardim Atlântico.Essas construções, embora tenham importância ambiental de retenção do volume de água, não são contabilizadas no levantamento do MapBiomas enquanto curso natural, pois existem por ação humana. “Os lagos e reservatórios possuem valor econômico. O do João Leite, por exemplo, é muito importante para o abastecimento da cidade, mas para o meio ambiente não. Os lagos dos parques têm a importância da contemplação, do valor imobiliário, mas ambientalmente é incorreto”, diz o engenheiro especialista em hidrologia e recursos hídricos Marcos Correntino.No caso do Córrego Botafogo, a sua nascente localizada no Jardim Botânico passa por represamento feito por obra humana e seu curso é alterado ao longo da Marginal que leva o nome do corpo hídrico. “Se a gente olhar as imagens de satélite consegue perceber a relação da perda de superfície de água com o crescimento urbano”, diz Karla.A Marginal Botafogo ocorre com a expansão da cidade para as regiões Sul e Sudeste, com os condomínios verticais e horizontais, o que continuou com o Complexo Viário Jamel Cecílio e o prolongamento da via até a Avenida 2ª Radial.Segundo Correntino, a redução da superfície coberta por água não é uma prática comum só em Goiânia, sendo uma ação histórica do urbanismo, mas a partir de conceitos errados. “A canalização dos córregos não deve ser feita, o certo é conservar as matas ciliares e deixar os cursos correrem livremente”, diz.Para se ter uma ideia da participação dos cursos naturais, no início do período analisado, os rios, córregos e ribeirões cobriam 9,83% do total da área de Goiânia com água, enquanto que em 2020 esse porcentual é de apenas 2,52%.No geral, somando as superfícies de cursos naturais e de reservatórios, entre 2011 e 2020, Goiânia deixou de ter 111 ha de área de água e acrescentou 54 ha com a substância. Levando em conta que a cidade possui área total de 72 mil ha, em 2011 tínhamos 1,06% de Goiânia coberto por água, enquanto que uma década depois esse porcentual reduziu para 0,99%.Situação provoca escassez hídrica e altera até o climaA redução dos corpos hídricos naturais de Goiânia ao longo dos anos, que chegaram a diminuir 77% na última década, interfere no processo de escassez hídrica que a região metropolitana sofre nos períodos de seca e também gera mais calor na cidade.“Mesmo que os córregos e rios não sejam as fontes de abastecimento, que são o Rio Meia Ponte e o Ribeirão João Leite, estão reduzindo os afluentes destes mananciais. O Botafogo, Cascavel, Macambira, todos deságuam no Anicuns e este no Meia Ponte”, esclarece a geógrafa e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) Karla Maria Silva de Faria.Karla explica que é preciso pensar em toda a bacia hidrográfica e não apenas em um manancial específico, como exemplo do Meia Ponte. Ela relata ainda que a diminuição da superfície da cidade coberta por água causa ainda uma perda na qualidade ambiental, já que é necessário ter a substância para uma área de proteção permanente (APP) saudável, ou seja, com a variabilidade de espécies necessária.“Se tem pouca vazão, a manutenção da APP vai ser prejudicada e não vai ter vegetação suficiente, com árvores e macrofauna. Precisa de água para ter a mata ciliar”, conta. Uma amostra disso é justamente as encostas das canalizações dos córregos Botafogo e Cascavel, em que só existe vegetação rasteira. A geógrafa completa que a situação também interfere no microclima da cidade, que passa a ter um lençol freático cada vez mais profundo e áreas mais impermeáveis, deixando o espaço mais quente e seco, além de propício a enxurradas e enchentes.O engenheiro Marcos Correntino considera que os leitos dos corpos hídricos urbanos deveriam receber projetos de parques lineares, o que é corroborado por Karla. Ela ressalta que o Paço Municipal deveria finalizar o projeto do Parque Urbano Ambiental Macambira Anicuns (Puama), que teve apenas 3 dos 11 setores feitos. “O Puama é um exemplo de como é possível incentivar o resgate das APPs. Essa proposta de resgate e integração com a população poderia ser feita em outros corpos hídricos, como o Anicuns.”O projeto, iniciado em 2003, só começou a sair do papel em 2012 e a primeira etapa foi finalizada em 2017. A continuidade depende de acordo internacional para financiamento com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cujo pedido deve ser feito à União.De acordo com a Agência Municipal de Meio Ambiente (Amma), o trabalho com os corpos hídricos da capital é feito a partir “do monitoramento da qualidade da água, fiscalização de descarte irregular de resíduos e lançamentos clandestinos, projetos de recuperação de nascentes e reflorestamento de APPs, entre outras ações”.A Amma informa que a redução da área dos rios e córregos de fato ocorre com o crescimento da cidade. Sobre a canalização dos corpos hídricos, a agência considera que, como medida urbana, são avaliados vários fatores, como mobilidade, habitação e drenagem. “A Amma se atém ao solicitado, quando do licenciamento das obras. Se atende aos parâmetros legais, o projeto tem aprovação. Do contrário, é rejeitado.”Perda de mananciais faz parte do processo histórico visto na cidadeO engenheiro especialista em hidrologia Marcos Correntino avalia que é perceptível como Goiânia tem perdido área que antes era coberta por água e ele cita o caso histórico do Córrego Buritis, que nasce próximo da Alameda Ricardo Paranhos, no Setor Marista, e deságua no Córrego Capim Puba, no Setor Norte Ferroviário.Neste caso, o córrego está quase totalmente subterrâneo e aparece ao público apenas no Bosque dos Buritis, no lago do local e no curso canalizado até ser novamente escondido. O historiador e analista ambiental Thiarlles Elias de Paula reforça que “Goiânia tem um histórico de impermeabilização do solo intenso”. Ele relata que, durante as primeiras décadas do município, havia fontes de água no Centro da capital para as pessoas tomarem banho.Em sua dissertação de mestrado sobre o assunto, Paula descreve que os primeiros trabalhadores da cidade consumiam água por meio de bicas e duchas que estavam, por exemplo, na Rua 24, do Setor Central. “Ou seja, partindo do pressuposto que os trabalhadores de Goiânia tomavam banho em bicas a céu aberto onde hoje é concreto, asfalto ou condomínio, respondo que sim, é uma tradição cobrir a superfície com água ou com este líquido no subsolo em Goiânia”, diz.Por outro lado, o analista entende que o crescimento urbano vem ocorrendo de forma oposta ao que era projetado na construção da cidade, visto que os prédios seriam projetados para ficarem em lugares altos, como no Bueno e Serrinha.“Só que atualmente fazem prédios e condomínios até perto de veredas. Percebo a construção de edifícios em volta de parques como equivocada. Pois difere dos projetistas das primeiras décadas. Parece-me que quem andou no Parque Vaca Brava e Bosque dos Buritis até os anos 2000 via mais regos e bicas.”Leia também: - Nova ecobarreira é instalada no Rio Meia Ponte- Comurg tira 90 toneladas de lixo por dia dos córregos de Goiânia- 60% dos goianos correm risco de desabastecimento de água em 20 anos-Imagem (1.2474895)