Por que a presença do tambaqui nas águas do Centro-Oeste, espécie de peixe nativa da bacia amazônica, tornou-se uma polêmica? Embora o assunto tenha vindo à tona esta semana em Goiás de forma atabalhoada, provocado por uma discussão em redes sociais, a questão há muito tempo tem preocupado pescadores, artesanais e esportivos, e o meio científico.O POPULAR foi atrás de respostas para explicar o que está por trás dessa discussão, que envolve um peixe apreciado pelo sabor de sua carne, por ocupar o segundo lugar na piscicultura brasileira depois da tilápia e pelo fato de que tem sido capturado com muita facilidade na bacia do Araguaia/Tocantins, distante de seu habitat natural.Um dos mais respeitados ictiólogos brasileiros, o biólogo Fernando Mayer Pelicice, doutor em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais, explica que, embora a bacia Tocantins/Araguaia compartilhe parte de sua fauna com algumas bacias amazônicas, principalmente a amazônica central, o tambaqui é considerado uma espécie invasora e vem se proliferando rapidamente. Ele lembra que, ao contrário da tilápia, alvo de muitos estudos, há pouco conhecimento sobre o que pode ocorrer a partir desse movimento. “O que se espera é que o invasor interfira no sistema e na dinâmica populacional de outras espécies que usam os mesmos recursos que ele, como a caranha, que é nativa e tem hábitos parecidos com os do tambaqui.”Relatos de pescadores dos rios Araguaia e Tocantins, segundo Fernando Pelicice, confirmam que nos últimos anos o tambaqui tem aparecido com muita frequência e em diferentes tamanhos. “Isso indica que há reprodução no ambiente, o que é preocupante.”ImprevisibilidadeO pesquisador enfatiza o aspecto da imprevisibilidade pela ausência de estudos aprofundados, mas cita o caso da introdução da caranha brasileira na Papua Nova Guiné, um país da Oceania. “Peixe omnívoro, que tem sua dieta voltada para frutas, sementes e vegetais, a caranha em outro ambiente mudou totalmente seu comportamento. Lá viraram carnívoros, se alimentando de pequenos peixes, mas também atacando humanos, como as piranhas aqui, dando mordiscadas. É uma mensagem do que pode acontecer aqui, com o tambaqui.”Fernando Pelicice está no ranking da Public Library of Science (PLOS) como um dos mais influentes cientistas do mundo em sua área de atuação, que é a ecologia e a conservação de peixes de água doce. Ele acredita que a possível fonte de impacto da invasão do tambaqui nas águas da bacia do Araguaia/Tocantins seja a piscicultura, o que é um padrão global.Peixes redondos, como o pacu, a caranha e o tambaqui são alvos de aquicultura. “Normalmente esses tanques estão próximos de cursos d’água e, se houver um mal manejo ou um acidente, como uma cheia que rompe o reservatório, os peixes são levados para a calha. Peixes em piscicultura vivem em densidades que não existem na natureza e são tratados com ração e coquetéis químicos. Eles podem levar vírus, parasitas e fungos, infectando espécies no ambiente natural.”O pesquisador lembra que é preciso mais estudo para entender a extensão da distribuição do tambaqui fora da bacia amazônica e o seu potencial de degradação. “Por enquanto, ficamos com o que há na literatura científica, o comportamento dele e o caráter da imprevisibilidade, que é inerente às invasões biológicas, por isso é melhor estudar e entender porque surpresas aparecem. É o princípio da precaução.”O caso da caranha brasileira na Papua Nova Guiné ficou conhecido pela frequência dos ataques. Lá, segundo Fernando, o peixe, aqui inofensivo, ganhou o apelido de “corta-bolas”, por morder a região genital de pescadores.Carne apreciadaComo o tambaqui tem uma carne apreciada e valor comercial, o pesquisador defende um programa de políticas públicas voltado para o monitoramento dessa invasão. “Esse tipo de conflito já existe no Rio Paraná, para onde foi levado o tucunaré, também originário da Amazônia.Embora seja uma espécie invasora e altamente destrutiva do ecossistema estranho a ele, há pressão para a sua preservação. Tanto no Paraná quanto em São Paulo, políticos apresentaram leis para preservá-lo, passando por cima do conhecimento científico. A única explicação é que é um peixe muito desejado.”A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) reconhece o tambaqui como uma espécie exótica, como está definido na mais recente cartilha sobre orientações de pesca no estado. O peixe entra na lista das espécies que são permitidas a captura e o transporte, independentemente do tamanho, exatamente pelo impacto negativo que pode provocar por ser exótico ao ambiente da bacia Araguaia/Tocantins.Fernando Pelicice lembra que, dentre as amazônicas, esta bacia é a que possui o maior porcentual de espécies endêmicas. Isolada hidrologicamente e morfologicamente, muitas espécies só ocorrem aqui e pode ocorrer uma extinção global se houver um impacto de peixes invasores. “Numa publicação de 2016, constavam 194 espécies endêmicas, representando 50% do total. É um número muito alto. Outros rios amazônicos têm de 10 a 35%. É relevante para a conservação da biodiversidade.”Sequenciamento genético ajuda a cadeia produtiva O que colocou fervura nos debates sobre a preservação do tambaqui nas águas da bacia do Araguaia/Tocantins esta semana foi a manifestação do secretário de Turismo de Nova Crixás, João Luís Busnardo, onde está o distrito de São José dos Bandeirantes, destino de aficionados por pesca esportiva. Numa rede social ele defendeu a matança da espécie por ser uma espécie invasora e estar sendo capturada com mais frequência do que espécies nativas. Mas, por outro lado, o tambaqui, em seu habitat natural e criado em cativeiro, tem peso na economia. Hoje, no Brasil, ele alcança uma produção anual de mais de 200 mil toneladas, atrás apenas da tilápia, com mais de 500 mil toneladas, segundo o Anuário da Piscicultura de 2022.Manaus, a capital amazonense, é o principal mercado consumidor do tambaqui, um peixe ainda pouco estudado para entrar na dinâmica do agronegócio. Mas um trabalho liderado pelo zootecnista Alexandre Hilsdorf, da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), no interior paulista, deve mudar essa lógica. Em parceria com colaboradores do Reino Unido, das universidades de São Paulo (USP) e Estadual Paulista (Unesp) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o grupo de pesquisadores da UMC concluiu o sequenciamento e a análise do genoma da espécie, abrindo caminho para o melhoramento genético do tambaqui.A grande diferença em termos comerciais do tambaqui com a tilápia, espécie africana, é que a última foi alvo de um grande programa de melhoramento genético na Ásia, a partir dos anos 1980. Isso levou a variedade melhorada, conhecida como Gift, a ser produzida em 14 países, entre eles o Brasil, com uma cadeia de empresas dedicadas à pesquisa e desenvolvimento de produtos voltados a esse mercado. Em Goiás há cerca de 2 mil piscicultores, segundo a Agência Goiana de Assistência Técnica, Extensão Rural e Pesquisa Agropecuária (Emater), com criatórios bem estruturados em municípios como Niquelândia e Rianápolis.Os estudos liderados por Hilsdorf fazem do tambaqui uma potencial commodity brasileira nos próximos anos. Os pesquisadores identificaram 13 genes potencialmente associados à ausência de espinhas intramusculares na espécie, o que pode ser de interesse comercial. O trabalho, segundo a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que o financiou, reúne o conhecimento mais recente sobre diversos aspectos da cultura do tambaqui, desde a história da produção no Brasil – as primeiras tentativas de domesticação datam ainda dos anos 1930 –, passando pelos sistemas de produção, genética, nutrição, doenças, até os métodos de processamento.“Um peixe amazônico, com dieta 75% vegetariana e manejo muito fácil, tem um enorme potencial como produto sustentável, num momento em que a aquicultura está sob ataque por conta dos impactos no meio ambiente causados, por exemplo, pela cultura do salmão, primeiro peixe a se tornar uma commodity internacional”, disse Alexandre Hilsdorf à revista Reviews in Aquaculture.Para o pesquisador, “os produtores necessitam ir além, com a busca de produtos geneticamente superiores para o estabelecimento de uma piscicultura economicamente e ecologicamente sustentável. É isso que o mercado no mundo todo exige atualmente.”Proprietário do Clube de Pesca Lago Verde, um dos mais conhecidos em Goiânia para a pesca esportiva, Norton Ney Follador Faria mantém tambaquis em seus dois lagos, grande parte adquirida ainda alevinos há quase 30 anos. Depois, comprou exemplares maiores de criatórios. Para ele, toda a discussão envolvendo o tambaqui é política. “É uma espécie que convive bem com a piraíba, já presente no Araguaia, embora seja da Amazônia. Será muito difícil acabar com o tambaqui no Araguaia.”Mudança climática tem impacto na espécieAs mudanças climáticas podem estar impactando na distribuição do tambaqui na América do Sul. Foi o que mostrou a pesquisadora paranaense Taise Miranda Lopes, em artigo publicado em 2019 na revista científica Bioika. Conforme a pesquisadora, os ecossistemas de água doce são particularmente vulneráveis às mudanças climáticas, porque o aumento da temperatura e a mudança nos regimes de precipitação afetam a dinâmica do escoamento da água, a sazonalidade e a duração das inundações e secas, a temperatura e a qualidade da água. Tudo isso deve causar uma drástica redução do tambaqui na Amazônia, sua região nativa, que começa a se refugiar na prática da piscicultura. No Brasil, subsídios governamentais fomentam a criação de espécies não nativas em cativeiro como parte dos programas sociais de produção de alimentos.Os dados levantados por Taise revelam que a bacia do Araguaia/Tocantins é uma das que mais reúne condições climáticas para receber o tambaqui, depois das bacias do alto rio Paraná e do Atlântico Leste-Sudeste.Em sua bacia original, a distribuição da espécie corresponde a 68,67%, mas ao transpor as barreiras geográficas, pode ocupar aproximadamente 24,6% da região invadida. Taíse Miranda acredita que esse potencial de ocupação pode ser amplificado com a atividade de piscicultura, que promovem escapes dos indivíduos para os corpos d’água.“O cultivo de espécies não nativas é uma causa potencial de invasão biológica e, portanto, constitui uma ameaça significativa à biodiversidade de água doce. Nosso estudo sugere que gestores e tomadores de decisão devem definir cuidadosamente estratégias de longo prazo mais apropriadas para a conservação da biodiversidade de água doce. Essas estratégias devem incluir ações de manejo preventivo e políticas de conservação especificamente desenhadas com base na biogeografia das espécies e nas características ambientais de cada bacia hidrográfica”, diz a pesquisadora.Para Fernando Pelicice, que conhece bem a realidade da bacia do Araguaia/Tocantins, já estamos vivenciando a condição de futuro apontada por Taíse Miranda. “Um colega que trabalha há muito tempo na Ilha do Bananal me disse que só recentemente começou a aparecer tambaqui por lá e, junto, umas caranhas estranhas. Levantamos a hipótese de hibridismo. Pode ser que haja hibridismo com a caranha ou estejam sendo cultivados híbridos em tanques que estão escapando para o ambiente, o que é muito grave.”