A destroca de bebês entregues por engano para famílias por hospitais e maternidade não finda a dor e a angústia do drama. O POPULAR ouviu pais e mães que passaram pelo problema, além de uma psicóloga clínica infantil. Sentimentos de indignação, revolta e culpa permeiam a mente de quem enfrentou essas situações, mesmo muitos anos depois. O simples fato ver as histórias se repetirem com outras pessoas traz de volta a dor, revelaram os entrevistados.Esta semana, em Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital, duas mães, em meio a muitas lágrimas, voltaram a viver o drama de destrocar os bebês que imaginaram ter gerado. Foram 41 dias de apreensão e incertezas até que voltassem para casa com os filhos biológicos. Uma angústia que está longe de terminar.“Estamos vivendo um pesadelo”, comentou no fim de dezembro último Juciara Maria da Silva, uma das mães de Aparecida de Goiânia comunicadas pelo Hospital São Silvestre de que teria recebido o bebê de outra mulher, Viviane Dias. As crianças nasceram no dia 29 daquele mês e o engano foi percebido pela própria unidade de saúde após a alta de ambas. Testes de compatibilidade confirmaram o erro e na terça-feira (8), diante dos advogados e da delegada Bruna Coelho, da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), do município, as mães receberam os filhos que geraram.Neste fim de semana, Juciara e Viviane vão se encontrar pela primeira vez, após a destroca. “Estão em fase de adaptação e felizes por terem esclarecido a verdade. Elas esperam que a polícia descubra o que realmente ocorreu para responsabilizar os culpados”, afirma Eduardo Costa, advogado de Juciara. O próprio estabelecimento hospitalar confirmou a “quebra de protocolo” e providenciou os primeiros exames de DNA, que mais tarde exigiram contraprova, por isso a demora em esclarecer o erro.A pouco mais de 30 km de distância, outras duas mulheres ficaram atentas ao sofrimento de Juciara e Viviane. Em 2017 elas viveram situação semelhante no Hospital de Urgências de Trindade (Hutrin), que em agosto do ano passado passou a se chamar Hospital Estadual de Trindade Walda Ferreira dos Santos (Hetrin). O drama delas durou 24 horas, mas quatro anos depois a aflição ainda ronda as famílias. “Falar disso ainda me dói muito. Me deixa emotiva”, disse chorando Renata (nome fictício) esta semana ao POPULAR. O episódio marcou profundamente a dona de casa que teme deixar a filha sozinha, por isso prefere trabalhar na própria residência.Renata e Júlia (nome fictício) deram entrada na unidade de saúde, que integra a rede pública estadual, no dia 17 de agosto de 2017 para dar à luz. Renata foi chamada primeiro para o centro cirúrgico. Quando Júlia entrou, ela ainda viu a criança da outra mãe. Ela demorou um pouco mais na sala porque fez laqueadura, mas também verificou os traços da própria filha ao nascer. Quando a enfermeira levou o bebê para o quarto, Júlia disse que a filha não era dela e ouviu da enfermeira que se tratava de “depressão pós-parto”.Inconformada, Júlia saiu pelos corredores gritando, chamando a atenção de Renata. As mães ouviram de um grupo de médicos, de psicólogos e da chefe de enfermagem que estavam confusas, mas conseguiram convencer um deles a verificar a câmera de monitoramento e a troca foi confirmada. Elas deixaram o hospital com as crianças que geraram, mas foram dez dias de angústia até que exames de DNA confirmassem que as filhas eram realmente delas. “Até conseguir ter minha filha nos meus braços, passei por muita coisa. Ouvi muita coisa de quem estava ali para resolver. Foi muito doloroso pra mim”, relata Renata.As famílias vivem no mesmo bairro em Trindade e sempre se falam por mensagens. Desde o episódio, também se encontraram algumas vezes. “No início, depois do parto, eu não queria ter contato com a outra mãe e nem com ninguém. Fiquei com medo que tirassem minha filha de mim”, diz Renata. “Foi traumatizante”, concorda Júlia “O que deveria ser um sonho foi transformado em pesadelo. Quando minha filha nasceu, a primeira coisa que fiz foi observar se ela tinha os traços que sonhei. Aí me entregaram outra menina.” Após a confirmação da troca registrada em documento, as mães ouviram um pedido de desculpas.AtitudeQuando, em julho de 2019, no mesmo hospital ocorreu nova troca de bebês, Renata e Júlia decidiram agir. Elas buscaram a advogada Darlene Liberato para exigir, na Justiça, uma indenização por danos material e moral. Elas se uniram aos pais de dois meninos que descobriram 13 dias após o parto, que tinham recebido os bebês trocados. Exames de DNA solicitados pelas autoridades policiais confirmaram as suspeitas. Durante 23 dias os casais ficaram na expectativa, chegaram a viver sob o mesmo teto sob uma avalanche midiática, até que retomassem o curso de suas vidas.Advogada pede R$ 500 mil de indenizaçãoA advogada Darlene Liberato, a pedido dos pais, representa judicialmente os bebês trocados em 2017 e em 2019 no Hutrin. Ela explica que os quatro processos foram ajuizados em dezembro de 2019 e audiências de conciliação realizadas, mas sem acordo porque as partes apresentaram contestação. As ações são contra as organizações civis, que administravam o hospital nos períodos das trocas, e contra o Estado de Goiás, a cuja rede de saúde pertence a unidade. “O sentimento das famílias é de revolta ante a morosidade da Justiça. Elas entendem que, se tudo tivesse sido resolvido no primeiro caso, não teria tido nova troca de bebês. E há uma declaração oficial de 2017 confirmando o erro.”Darlene Liberato, que pede uma indenização de R$ 500 mil para cada família, analisa os episódios também sob o aspecto emocional. “Não é pelo dinheiro. Essas ações possuem um caráter de punição, são medidas pedagógicas. As mães quando entram na maternidade são tratadas como números. Cada vez que ocorrem fatos como esses, inclusive esta semana em Aparecida de Goiânia, passa para essas famílias um filme de dor e revolta. Tudo se repete.” Ela lamenta que, mais de dois anos depois da audiência de conciliação, ainda não tenha sido marcada a audiência de instrução, quando serão ouvidas as testemunhas. A troca de bebês ocorrida no Hutrin em 2019, envolvendo as mães Pauliana Maciel Aguiar de Sousa e Aline de Fatima Bueno Alves, provocou o indiciamento por crime culposo - quando não há intenção - da enfermeira responsável por vestir os bebês logo após o nascimento. Ela colocou as roupas erradas nas crianças, embora as pulseirinhas estivessem com o nome correto. O erro foi descoberto porque o marido de Pauliana, Genésio de Souza, desconfiou de que algo estava estranho.“Não queremos mais falar sobre isso. Foi algo muito desgastante e até hoje minha esposa está depressiva”, afirmou Genésio ao POPULAR esta semana. A família mora em Trindade, a 27 km da casa de Aline, em Santa Bárbara de Goiás, que agora cuida do filho sozinha, após se separar do pai dele, Murillo Praxedes Lobo. “É complicado falar sobre isso. Às vezes fico com raiva de mim mesma de lembrar que, depois de 24 dias com o outro bebê, não senti o meu filho biológico como meu. Mas, isso passou, não deixei de cuidar e o amamentei por um ano e quatro meses”, relata Aline. Ela conta que ainda fala com Pauliana por telefone, e sabe que a mulher que esteve com seu filho biológico por quase um mês teve mais dificuldade de adaptação após a destroca. Para Aline, as sequelas emocionais ainda estão latentes. “Por mais que eu não queira comentar, todo mundo fala e faz piadinhas. Eu tinha imaginado ter três filhos, hoje não quero mais. Tenho medo de reviver tudo. Se eu fosse ter outro filho, jamais iria para a sala de parto sozinha, faria diferente.” Famílias mantêm convivência 12 anos depoisEm Nerópolis, município também da grande Goiânia, os casais Elaine Gomes de Oliveira Pires e Davidson Cavalcante Pires; e Queila Celina dos Santos e Paulo César têm procurado manter distância de veículos de imprensa que os colocaram em evidência em 2010. Em abril daquele ano, um ano após o nascimento dos filhos caçulas, eles descobriram que os garotos foram trocados no berçário do Hospital Santa Lúcia, no bairro de Campinas, em Goiânia. Intrigada com o aspecto físico do neto, a mãe de Queila decidiu providenciar o exame de DNA. Ao confirmar a suspeita, ela procurou o hospital e a DPCA de Goiânia, na época conduzida pela delegada Adriana Accorsi, hoje deputada estadual. A investigação concluiu que houve uma sucessão de erros conduzida pelas três atendentes de enfermagem que trabalhavam no centro cirúrgico. Uma não identificou os bebês, outra não deu banho e a terceira deu os banhos e fez a identificação, mas trocou as roupas e as pulseiras. Uma delas já tinha sido indiciada anteriormente por outra troca no mesmo hospital em 2008. O caso teve grande repercussão na época. Para reduzir o sofrimento e manter as famílias próximas, a dupla sertaneja João Carreiro e Capataz comprou duas casas em Nerópolis, onde já vivia a mãe de Elaine, e as escriturou em nome dos garotos. A apresentadora Ana Maria Braga assumiu a reforma e comprou móveis. A vida das famílias foi totalmente alterada pelo arranjo. Elaine e o marido deixaram a chácara onde viviam em Terezópolis de Goiás e Queila e Paulo se transferiram de Goiânia para a cidade vizinha.O início não foi fácil. Queila teve mais dificuldade de aceitação da nova realidade. As crianças, que este ano completam 13 anos, nunca deixaram de conviver. “Os meninos estão pré-adolescentes, mas não querem aparecer. Temem que os colegas da escola fiquem falando. Agora cabe a eles decidirem”, explica Elaine ao pedido de entrevista. Agora professora, Elaine conta que a convivência entre as famílias e os garotos continua muito próxima, frequentam a mesma igreja e uma sempre é comunicada dos acontecimentos que envolvem a outra. As famílias receberam indenização do hospital, em valores nunca mencionados. Rio VerdeHá exatamente 37 anos, no dia 12 de fevereiro de 1985, Kátia Rosa e Lucilene foram trocadas ao nascer na Maternidade Augusta Barros, em Rio Verde, no Sudoeste de Goiás. A verdade só veio à tona 23 anos depois, história que O POPULAR contou no dia 6 de dezembro de 2008. Kátia começou a trabalhar com Juliana em 2005 e esta desconfiou da semelhança física da colega de trabalho com a irmã Lucilene. Como a mãe biológica de Kátia, Maria Flauzina chegou a comentar com a enfermeira na época do parto que aquela não era sua filha, mas foi contestada, o exame de DNA foi realizado décadas depois, confirmou a troca.O pai biológico de Kátia, Gumercindo José de Souza, não conheceu a filha. Ele morreu em 2006 quando a investigação estava em andamento. Em 2011 a maternidade foi condenada a pagar uma indenização de R$ 40 mil às famílias pela juíza Stefane Fiúza Cançado Machado, que levou em consideração vários fatores, como a suspeita de traição que Gumercindo nutria pela mulher. Dramas na infância marcam convívio familiar Psicóloga clínica infantil, Júlia Caixeta Rodrigues de Oliveira lembra que a infância é a fase mais decisiva da vida de um ser humano, e que experiências nesta fase permanecem ao longo de sua trajetória. Traumas podem trazer consequências negativas para a personalidade do indivíduo. “O cérebro de uma criança pode ser comparado a um favo de mel vazio, prestes a ser preenchido com novas descobertas. Tudo aquilo que for presenciado e escutado nessa fase será absorvido e guardado por anos ou por toda a vida.”Júlia Caixeta enfatiza que, quem passa por traumas na infância e na adolescência, passa a entender que o ambiente em que vive é inseguro, se tornando reativo. Isso, segundo ela, pode contribuir para um estado de hipervigilância e ansiedade na vida adulta. Entretanto, os traumas infantis afetam também os pais e familiares próximos que convivem com o problema.“Eles são envolvidos por insegurança, aflições, culpa, medo, sintomas de depressão e angústia sobre os filhos.” Todos esses sentimentos, como explica a psicóloga, geram uma grande angústia no convívio familiar porque os pais ficam preocupados e frustrados quando não conseguem ajudar os filhos a administrar os traumas do início da vida. “Eu tenho a pulseira de nascimento do meu filho, hoje com 12 anos, mas não o da minha filha. Sempre que vejo alguma postagem da outra menina fico pensando: e se ela estivesse comigo?. Aí, olho para a minha e choro só de pensar que ela poderia ter sido criada por outra pessoa. Fomos nós que batemos o pé de elas tinham sido trocadas, não o hospital. Se não tivesse sido resolvido, teríamos ido embora. Será uma marca que a gente nunca vai esquecer”, diz chorando Renata, quatro anos de viver um pesadelo no hospital público de Trindade. -Imagem (Image_1.2399770)-Imagem (Image_1.2399769)