A pandemia do novo coronavírus despertou um confronto entre médicos. De um lado os que defendem o tratamento de casos iniciais da Covid-19 com remédios sem comprovação de eficácia, como a cloroquina, a hidroxicloroquina associada ou não à azitromicina, a ivermectina, além de vitaminas, no que já é chamado de “kit Covid”. Do outro, profissionais que alegam não haver comprovação científica das medicações.A polarização tem se acirrado com a defesa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que insiste no uso da hidroxicloroquina, antes e depois de divulgar na terça (7) que está com Covid-19.Não existe medicamento com eficácia comprovada em nenhuma fase da doença do novo coronavírus, que já infectou mais de 12 milhões de pessoas no mundo.A cidade de Florianópolis (SC) é o retrato da polarização em torno do “kit Covid”. Circulam na cidade dois manifestos médicos: um com 210 assinaturas de profissionais pedindo que os medicamentos sem eficácia comprovada sejam prescritos nas fases iniciais da doença, e outro, com 680 nomes (370 de SC e 310 de outros Estados), não recomendando o uso das terapias na infecção pelo novo coronavírus.O grupo favorável ao kit reconhece que não existem fortes evidências científicas sobre benefícios do tratamento precoce. “Mas este momento exige que façamos o tratamento conforme o que temos de evidências disponíveis”, diz a carta em defesa do uso dos medicamentos, que foi entregue ao governo do Estado.Já o grupo contrário, que tem entre os signatários associações de bioética, de virologia e de saúde coletiva, alerta que, além da falta de comprovação na Covid, o uso da hidroxicloroquina traz riscos de arritmias e parada cardíaca.Lembra também que cerca de 80% das pessoas com a doença terão apenas sintomas leves e moderados, independentemente do tratamento prescrito no início da doença. A ideia do grupo é torná-lo um movimento nacional de resistência ao uso de terapias sem evidência durante a pandemia.O Ministério da Saúde regulamentou o uso da hidroxicloroquina, mas hospitais como o Albert Einstein (SP) recomendam que os médicos não receitem a medicação. A orientação veio após o FDA (agência americana que regula os fármacos) ter revogado o uso para tratamento da Covid-19.Jurandir Frutuoso, secretário executivo do Conass (Conselho Nacional de Secretários da Saúde), diz que, desde o início da pandemia, este confronto sobre o uso medicações sem evidência tem preocupado muito os gestores de saúde. “Seu maior dano foi embotar a discussão sobre o essencial na pandemia.”Estudo liderado pelo cardiologista Luis Claudio Correia e publicado no Journal of Evidence-Basead Health Care, vinculado à Escola Bahiana de Medicina, mostra que há um “efeito pandêmico” por trás destas decisões médicas irracionais.Foram ouvidos 370 médicos sobre a prescrição da hidroxicloroquina para Covid-19. A propensão em prescrevê-la foi alta, variou entre 37% a 89%, de acordo com a gravidade da doença.“Isso representa uma fragilidade cognitiva de nossa sociedade. É utópico querer Medicina baseada em evidências sem uma sociedade baseada em evidências. No fundo, as pessoas não são contra ciência, na verdade a sociedade não entende o que é ciência e seu papel do processo de tomada de decisão.”