Em Goiás, dois casos recentes envolvendo gestação de crianças, meninas de 11 e 12 anos, vítimas de abusos sexuais, revelam o quanto é frágil a rede de proteção da infância e adolescência. As histórias remetem a fatos que ocorreram no Espírito Santo em 2020 e em Santa Catarina, este ano, que depois de muita polêmica, a Justiça autorizou o aborto legal.Por aqui, em um dos casos, o Juizado da Infância e Juventude negou o procedimento em razão da não autorização da avó paterna da criança abusada. No outro, a menina não suportou as transformações provocadas pela gestação em seu corpo em formação, morrendo após um quadro de eclâmpsia. O bebê completou um mês de vida.Dados da Secretaria de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) mostram que em 2021, chegaram ao conhecimento das forças policiais 1.118 casos de estupro de vulnerável (até 14 anos) no estado. Até junho de 2022, houve outras 572 ocorrências.Em todo o País, conforme aponta a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), dos 18.681 registros de violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes em 2021, 18% estão relacionadas à situação de violência sexual. Até maio deste ano foram registradas 4.486 denúncias de abusos, mais que o dobro das denúncias no mesmo período de 2020.Um estudo de cooperação técnica realizado entre a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia e a organização global Vital Strategies, divulgado no fim de 2021, mostrou que entre 2010 e 2020 houve na capital 8.295 notificações de violência interpessoal contra mulheres junto ao Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan).Quase 1.400 estavam na faixa etária entre 10 e 19 anos. Em 40% dos casos, entre 10 e 14 anos, os abusos ocorreram no seio familiar. O mapeamento, como disse Fátima Marinho, médica epidemiologista que coordenou o estudo, permite identificar trajetórias de mulheres vítimas de violência e evitar casos de internação ou mortes, desfechos que culminam em oportunidades perdidas.Dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), do Ministério da Saúde, mostram que até junho deste ano, em Goiás, 168 meninas, com idade até 14 anos, deram à luz. No ano passado foram 450 e em 2020, no auge da pandemia da Covid-19, quando as medidas restritivas sanitárias obrigaram o isolamento social, 474 crianças e adolescentes se tornaram mães no estado.Leia também:- Menina de 5 anos denuncia que sofreu abuso sexual do próprio pai, em Anápolis; ouça áudio Corpo de criança não está preparadoPresidente da Comissão Nacional Especializada em Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrago), o médico Robinson Dias de Medeiros disse ao POPULAR que o grande problema no Brasil hoje é a falta de informação, gerando situações complexas.“Mesmo sabendo da legalidade, as pessoas não estão preparadas. Existe uma deficiência muito grande inclusive na formação dos profissionais de saúde porque não se discute esses casos na graduação de Medicina e de Enfermagem, levando a um dilema ético e assistencial. Muitas vezes o profissional de saúde precisa ter atitude de ser ele a garantia do direito à paciente, o deixando em situação de insegurança.” Para o ginecologista, somente a educação e a redução de vulnerabilidade econômica, podem fazer diferença para essas famílias. “As pessoas confundem os conceitos de viabilidade fetal com a questão do aborto induzido, uma medida intencional de interromper a gravidez que vai do início da idade gestacional até o parto. Por isso, o correto é ter um profissional no serviço colaborativo que proceda a medicina fetal.”Ele explica que a Febrasgo fez um documento, a pedido do Conselho Federal de Medicina (CFM) recomendando que os serviços de saúde se esforcem em interromper a gravidez em casos de violência sexual antes das 22 semanas mas, se não for possível, que a paciente seja encaminhada para centros de referência, conforme o direito legal. O abuso sexual, na opinião do médico, leva a pessoa a ter no futuro tendências depressivas e suicidas, abusar de álcool e drogas e a ter dificuldades de desenvolver relações sexuais desejadas.“Por mais que eu me esforce, como médico e professor, não sei mensurar o impacto da violência numa menina dessas. Se o corpo é inapropriado para uma gravidez do ponto de vista orgânico, imagine para o psicológico. Essas meninas deveriam estar brincando de boneca, estudando. Elas não têm condições de dar aos filhos as oportunidades que elas também não tiveram.” Robinson Medeiros enfatiza que crianças têm organismos imaturos, dos pontos de vista biológico, físico e psicológico para gestar. “Na literatura médica há evidências científicas do risco de morte ser cinco vezes maior nesta idade, entre 11 e 12 anos, se comparado à idade considerada adequada para ter um filho, acima de 20 anos. E este caso de Goiânia é emblemático. É mais uma razão para que não se faça obstrução administrativa e objeção de consciência ao prestar assistência a essas vítimas.”Opiniões religiosas e parto mantidoEm Senador Canedo, Maria (nome fictício), então com 11 anos, engravidou do padrasto de 44. A gestação foi descoberta no dia 8 de março último quando um pastor evangélico esteve na casa da família e alertou a mãe para o crescimento da barriga da menina. Após um teste de farmácia confirmar a gravidez, a menina detalhou os fatos e ambas procuraram a delegacia da Polícia Civil. Medidas protetivas foram requeridas e aceitas pela Justiça.O padrasto foi preso e a criança encaminhada para o Hospital da Criança e do Adolescente (Hecad), na capital. Como consta na ficha do Sistema de Informação de Agravos e Notificação (Sinan), na unidade hospitalar mãe e filha manifestaram desejo de interrupção da gravidez. Direcionadas para o Hospital Estadual da Mulher (Hemu), o antigo Hospital Materno Infantil, a posição foi mantida.No relatório de atendimento ocorrido no dia 10 de março, a direção técnica do Hemu informa que a menina estava com 22 semanas e três dias de gestação e que, como solicitaram a interrupção da gravidez, Maria seria encaminhada para o Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG), referência em gestação precoce, consequência de violência sexual. Elas chegaram a assinar o termo de consentimento para o abortamento que seria realizado no dia 23 de março.No relatório, a direção técnica do Hemu esclarece que o procedimento seria “realizado de acordo com os protocolos institucionais validados pela literatura médica destacando as normas técnicas e portarias editadas pelo Ministério da Saúde”. Ressaltando que a interrupção da gestação da menina se justificava “tanto por seu direito diante de uma gravidez decorrente de violência sexual quanto pelo risco que a gravidez impõe à sua saúde”. Conforme o Hemu, a literatura médica reconhece que na infância e na puberdade, a menina ainda não concluiu o processo de maturidade cognitiva, psicossocial e biológica. “Diante de uma gravidez, esta condição de imaturidade biológica da adolescência precoce traz como consequência uma maior taxa de complicações obstétricas, tais como, anemia, pré-eclâmpsia e eclâmpsia, diabetes gestacional e parto prematuro. O Hemu foi além: “No Brasil, a cada 11 partos de meninas menores do que 14 anos, houve uma morte nesta faixa etária em 2019.”O relatório foi anexado aos processos que tiveram origem na Delegacia da Polícia Civil, em pedido de medidas protetivas de urgência e no Ministério Público atendendo solicitação da avó paterna que pediu a suspensão do procedimento alegando motivos religiosos, este tramitou em segredo de Justiça. No dia 18 de março a juíza Maria Socorro de Souza Afonso da Silva, do Juizado da Infância e Juventude da comarca de Goiânia determinou a suspensão da interrupção da gravidez. Uma assistente social e uma psicóloga da equipe Interprofissional do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) estiveram duas vezes com Maria e a mãe, uma mulher de 35 anos, que deu à luz a cinco filhos, com idades entre 14 e 2 anos.A família vive num barraco de dois cômodos, na periferia de Senador Canedo e depende de 650 reais de bolsas governamentais. A maior parte da renda vinha do padrasto, preso depois de engravidar a menina. A criança contou que não sabia o que era um aborto, mas depois que um padre mostrou um vídeo explicando, decidiu criar o bebê.“Eu tive cinco filhos e onde come cinco, come seis (sic)”, disse M., ao ser informada do Programa Entrega Legal para Adoção, criado pelo TJ-GO em 2020. Sobre a decisão, o Juizado da Infância e Juventude informou que não iria se manifestar.O bebê de Maria nasceu no dia 30 de junho. A equipe local do Centro de Referência de Assistência Social (Creas), que desde março acompanhava a família, informou no dia seguinte à juíza Patrícia Dias Bretas, da Vara de Família de Senador Canedo que a menina passou por uma cesariana no Hemu e que nem o pai nem avó paterna “não fizeram questão alguma de acompanhar o parto e nem mesmo forneceram nenhuma forma de subsídio emocional e ou financeiro para que o bem-estar da adolescente fosse assegurado”.No relatório, a assistente social do Creas é ainda mais enfática ao mencionar os representantes religiosos. “Nem mesmo os líderes religiosos (padre e pastores) não se manifestaram neste momento tão delicado para a vida dos infantes (cita o nome da menina e do bebê), porém apenas se limitaram a dar opiniões fundamentadas no radicalismo extremista religioso.”O POPULAR falou com M. nesta quinta-feira, 18). Ela contou que está cuidando do neto, que a avó paterna continua distante e que a família vem recebendo cestas básicas do Creas e de uma igreja. Os vizinhos também têm ajudado. “Não é uma situação fácil. A gente vai tentando lidar. Não posso trabalhar porque preciso cuidar do bebê. Minha menina não tinha muito peito, mas ainda deu de mamar um mês”, detalhou M.Mãe morre e fica o bebê Em Goiânia, Áurea (nome fictício), que completou 12 anos em março, morreu no dia 18 de julho depois de oito dias internada na Unidade de Tratamento Intensivo do Hemu. Levada por uma equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), ela deu entrada na unidade hospitalar com síndrome Hellp, uma complicação grave de pré-eclâmpsia.A menina estava acompanhada da mãe que informou não estar ciente da gestação. O fato foi registrado no Sinan e está sob investigação do Comitê de Óbito Materno, da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Ao POPULAR, a mãe, contou que não tinha ideia da gravidez da filha, uma menina que cresceu muito dos 9 aos 12 anos. “Ela não tinha nenhum sintoma”.Quando ela se sentiu mal, no dia 10 de julho, uma tia a levou no Cais do bairro Vila Nova, onde foi constatada a gestação e a menina encaminhada para o Hemu. O bebê, com 37 semanas, nasceu, mas o estado de saúde de Áurea piorou muito e ela não resistiu. C., mãe de outros quatro filhos (três ficaram no Maranhão), vive num barraco na Vila Monticelli, em Goiânia e não recebe bolsas do governo. Como está sem trabalhar para cuidar do bebê, vizinhos têm ajudado.C. desconfia que a filha engravidou do seu irmão porque Áurea passou alguns dias na casa da avó. O caso está sob investigação da Polícia Civil e do Comitê de Morte Materna da SMS e a família vem sendo acompanhada pelo Conselho Tutelar da região. Em uma das fichas do Sinan consta que “membros da equipe de saúde agiram como investigadores (policiais) submetendo a paciente a várias entrevistas solicitando esclarecimento sobre as circunstâncias que resultaram na gravidez, o que configura constrangimento ilegal”.Em nota ao POPULAR, a SMS confirmou que o caso está sendo investigado, junto ao hospital e familiares, pelo departamento de Vigilância e Saúde. “Assim que a investigação for concluída, o relatório final será encaminhado ao Comitê de Morte Materna da Secretaria de Estado da Saúde (SES).”-Imagem (1.1054521)