A venda de azeite de oliva falsificado alimenta há alguns anos divergências entre diferentes órgãos públicos responsáveis pela vigilância do produto. As críticas, porém, escalaram neste final ano.O MPF-SP (Ministério Público Federal de São Paulo) intensificou as queixas contra o que qualifica como medidas ineficientes de apreensão e suspensão da comercialização de azeites no país --como a realizada em 17 de dezembro, em que mais de 150 mil garrafas de 24 marcas foram retiradas de circulação.Segundo o órgão, as ações são paliativas e ineficazes no combate à atuação de empresas que adulteram, falsificam e contrabandeiam o óleo no Brasil. Uma Ação Civil Pública do MPF-SP contra a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) corre na Justiça desde 2017 e solicita medidas para combate dos crimes, como proibição da importação a granel e da comercialização de misturas do azeite com outros óleos.De acordo com o MPF, um Acordo de Ajustamento de Conduta encaminhado no final de agosto segue parado. "São mais de quatro meses, na prática, sem um efetivo andamento, supostamente, por contingências ligadas à situação de pandemia no pais", diz Karen Kahn, promotora responsável pela ação.Segundo Kahn, o processo demanda agilidade em razão dos riscos à saúde impostos pela adulteração e falsificação do produto, que é parte da dieta dos brasileiros e usado com frequência nas cozinhas pelo país. A cada ano, o país consome cerca de 70 milhões de litros de azeite, segundo a Embrapa. O Brasil é o terceiro maior importador, atrás apenas de EUA e União Europeia. Nas últimas duas safras, importou média de 97 mil toneladas do produto.Notícias sobre apreensões e suspensões das vendas de azeites adulterados ou falsificados tornaram-se recorrentes nos últimos anos. Em 2012, importadores já se queixavam sobre rotulagem inadequada e "fraudes grosseiras" de concorrentes ilegais, como uso de óleo de bagaço de oliva ou mistura de óleos vendidos como azeite de oliva.Quase dez anos depois, importadores ouvidos pela reportagem, que preferiram não se identificar, mantêm as queixas, a despeito das ações das autoridades para fiscalizar e retirar os produtos de falsificadores das prateleiras de supermercados.Segundo eles, as empresas falsificadoras operam uma "máfia" ou esquema ilegal que se beneficia da atual legislação para reincidir na prática. Diversas delas figuram de maneira recorrente nas listas de marcas reprovadas ou apreendidas e possuem sede ou localização de difícil rastreio.A Ação Civil Pública foi proposta pelo MPF em 2017 em razão de denúncias encaminhadas desde 2013 pela Proteste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor), braço do grupo Euroconsumers na América Latina. Também sucedeu operação do Mapa contra irregularidades no setor.A Ação do MPF apontava a ocorrência de crimes que seguem até o presente, segundo Kahn, como fraudes à legislação sanitária, ao comércio e à livre concorrência, além de práticas que ferem o direito à correta informação do consumidor e que põe em risco sua saúde, diz.A fraude mais comum na fabricação do azeite é a realização de mistura de óleo de soja com corantes e aromatizantes artificiais que simulam o produto original, segundo o Mapa. Além disso, também são encontrados casos em que o azeite de oliva refinado é comercializado como azeite extra virgem, considerado mais puro.Na última operação, o Ministério fechou fábricas sem registro e plantas voltadas à adulteração de produtos e apreendeu lotes contrabandeados.Na Ação Civil Pública, o MPF alega que as medidas pós-importação e comercialização são ineficazes e propõe a proibição da entrada de azeite a granel para ser envasado no país, ou sua limitação a embalagens com capacidade máxima de até cinco litros, medida similar à já adotada nos vinhos que chegam no Brasil.A proposta sugere ainda que as embalagens sejam lacradas pelo exportador, sem possibilidade de abertura antes que o produto chegue à mesa do consumidor."Atualmente, 90% do azeite consumido no país é importado em galões de grande volume, para posterior envase e fabricação de produto com marca nacional. Essa importação possibilita e tem gerado, de forma concreta, a prática e a continuidade de inúmeras fraudes", diz Kahn. "[O azeite] perde completamente a sua rastreabilidade, durante o armazenamento, distribuição e envasamento".Segundo o Mapa, a avaliação do MPF "desconsidera, principalmente, que o problema não deriva unicamente da importação de matérias primas para as fraudes em azeites, mas sim na orquestração de ações perpetradas por organizações criminosas que atuam travestidas de empresas clandestinas no Brasil", afirmou o Ministério em nota.Outra medida proposta pelo MPF é a proibição da comercialização de óleos compostos ou mistos. As medidas vigoram em regiões como a Europa, diz Kahn. "Tal vedação garante, dessa forma, a preservação regrada e rigorosa da pureza e identidade originais do azeite de oliva".Procurados pela reportagem, Mapa e Anvisa afirmaram que a adulteração de azeites é "fato histórico e de abrangência mundial". Os órgãos reconhecem a relevância do problema, mas contestam diversas das medidas propostas na Ação, como a proibição da comercialização de misturas."É uma prática adotada no mercado brasileiro e reconhecida na legislação há anos. Trata-se de uma alternativa para se dispor de produtos mais acessíveis ao consumidor. Além disso, é aceita em vários países", informou a Agência.A Anvisa defende ainda que a modificação do regulamento, por si só, não coibiria fraudes e crimes contra o consumidor. Desde 2005, o órgão adotou norma que obriga fabricantes a exporem o percentual de azeite de oliva utilizados nas misturas comercializadas.Em março, novas medidas foram anunciadas e devem entrar em vigor a partir do mesmo mês de 2022. Elas estabelecem requisitos sanitários para óleos e gorduras vegetais que circulam no país e também determinam que os rótulos apresentem informações claras sobre a composição, com destaque ao percentual de azeite. A medida não atendeu ao pedido do MP de estabelecimento de percentual mínimo de azeite nas combinações.A Agência também atribui ao Ministério a atribuição de determinar regras para a importação do produto e afirma que "uma ação dupla e sobreposta" por parte de ambos não é justificada e não contribuiria para a redução das fraudes. Ressalta ainda que atua no controle dos produtos após sua comercialização, a partir de suspeitas de irregularidade, e divide a responsabilidade dessa fiscalização com as Vigilâncias Sanitárias locais, coordenadas pela Agência.Um entendimento entre os três órgãos sobre a questão parece distante. Antes da Ação Civil Pública, um acordo extrajudicial fracassou. "[Anvisa e Mapa] contestaram os fatos, ao que tudo indica, afastando de si as responsabilidades legais e regulamentares que lhe seriam afetas ou imputando-as um ao outro", diz Kahn.O Mapa afirma que ações repressivas as fraudes, como a realizada no último dia 17, "não foram adotadas em resposta à citada Ação Civil Pública, mas por convicção do MAPA de que este é um tema relevante e tem merecido atenção institucional, com evolução tanto das ações ostensivas quanto com aprimoramento das ferramentas normativas".O Ministério defende ainda que os crimes relacionados ao produto exigem atuação coordenada das autoridades. "Parte das ações de combate ultrapassa as competências do MAPA, e deveria incluir outros órgãos e instâncias, como os órgãos policiais e outros", disse o Ministério à Folha.