Por mais que a tecnologia avance e a inteligência artificial (IA) se torne mais e mais potente, com impactos em todos os setores, ela seguirá sendo programada, ou seja, dependerá da escolha decorrente de um sistema de valores humanos. Essa responsabilidade na definição de rumos foi apontada pelo filósofo e escritor Luc Ferry, que chamou a atenção para a urgência não só de evitar o efeito ameaçador das inovações, como de saber direcionar os avanços para viver mais e com maior qualidade. Ex-ministro da Educação da França, ele proferiu palestra sobre o tema Inteligência artificial: quais os impactos e qual regulamentação nos níveis ético, político e social? A questão abrangente deu início nesta quinta-feira (20) à primeira Cúpula Internacional de Ética e Inteligência Artificial - Etos.IA, no Shopping Passeio das Águas, em Goiânia. A cúpula, que prossegue até sábado (22) e reúne grandes nomes da tecnologia de informação e da comunicação do Brasil e do exterior, é promovida pelo Governo de Goiás, por meio da Secretaria Geral de Governo. A realização é simultânea à Campus Party Goiás 2025, que prossegue até domingo (23). Ao apontar para a diferença entre os humanos e outros animais, que mesmo inteligentes “são programados e por isso não são livres”, Luc Ferry retomou frase de Jean-Jacques Rousseau, para quem um animal é “o que será toda a vida, e sua espécie, ao cabo de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos”. O comentário seguiu-se a uma citação feita em painel, logo após a palestra, pelo filósofo Clóvis de Barros Filho, professor da ECA-USP e autor de mais de 20 livros. O mediador desse debate foi Sérgio Branco, diretor no Instituto de Tecnologia e Sociedade no Rio (ITS Rio). Clóvis lembrou a pergunta recorrente se a IA vai ultrapassar o homem, afirmando que mesmo eficiente ao lidar com gigantesco volume de dados, ela não vai refletir, filosofar, como uma pessoa, a quem caberá determinar até onde a ferramenta pode ser útil e onde, conforme informações de quem a programou, ela pode falhar, discriminar, delirar. “Gato é gato, não procura se aperfeiçoar, mas nós podemos ir além.” Para Luc Ferry, essa especificidade é a diferença que manterá o trabalho humano relevante e insubstituível em determinadas funções, a exemplo do cuidado e educação das crianças, de ações criativas e até mesmo em habilidades manuais. Mas vai tirar das pessoas muitas ocupações gratificantes, afetando a identidade e a inclusão social. Aos que contrapõem que novos trabalhos serão gerados, Luc Ferry rebate que vão exigir educação e especialização de alto nível, como no caso de programadores e de quem atua com segurança cibernética. “Essas oportunidades não vão compensar o tamanho da transformação nas funções substituídas.” Além da maior eficiência e produtividade, “robôs não entram em greve”, comparou.Ainda assim, o filósofo que é um dos principais defensores do humanismo secular, da espiritualidade laica e do transumanismo, vê que cabe aos humanos definir estratégias diante das demandas de uma sociedade tecnologicamente desenvolvida. “A IA vai substituir o humano no campo de valores éticos, sociais e políticos? Não”, afirmou. Segundo o escritor, mesmo que consiga imitar com perfeição, a máquina não consegue sentir emoção, será sempre guiada por prompts, pistas, treinada por programadores. E aí sim o cerne de uma discussão fundamental, alertou, os diferentes pontos de vistas de quem programa essas ferramentas e o direcionamento dado a seu uso. Diante do impacto que já ocorre e tende a se ampliar no mercado de trabalho, com a inserção em elevada escala da robótica nas fábricas e da IA em campos especializados, eliminando postos de trabalho em áreas como a de tradução, diagnósticos na medicina, processos jurídicos, produção jornalística e mesmo na literatura e nas artes visuais, Luc Ferry chama atenção para implicações econômicas, sociais e até afetivas nesse processo. A “performance extraordinária da IA generativa”, capaz de acumular conhecimento e desempenhar tarefas com muito mais rapidez e eficiência que “o ser humano mais genial”, é destacada pelo filósofo, que constata tratar-se de caminho sem volta.Cenário que requer regulamentação e entre as mais urgentes medidas, Luc Ferry indica três: exigir identificação do conteúdo no qual houve uso de IA; acabar com o anonimato de contas em redes sociais; atribuir às plataformas responsabilidade solidária pelo que é propagado em redes. Ele falou ainda do perigo das deep fakes, dos crimes cometidos a partir da dificuldade de discernir entre o que foi simulado e a realidadeAté este sábado (22), o Etos.IA propõe mais de 60 horas de palestras, atividades e interações, com expectativa de público de 10 mil pessoas. Entre os destaques, estão o pioneiro da internet, cofundador dos protocolos TCP/IP e vice-presidente do Google, Vint Cerf; o especialista em governança de IA e autor do Regulamento Europeu de IA, Gabriele Mazzini; o filósofo, escritor e professor universitário estadunidense Michael Sandel e o jurista Ronaldo Lemos, coautor do Marco Civil da Internet e membro do Oversight Board da Meta. A entrada é gratuita, com inscrições antecipadas pelo site https://lets.4.events/bilheteria-C18443E102 (Plataforma 4Events). A Cúpula Internacional conta com a organização do Instituto Campus Party e com o apoio Institucional da Universidade Federal de Goiás (UFG) e do Centro de Excelência em Inteligência Artificial (Ceia-UFG) e co-organização do Grupo Jaime Câmara e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), além de patrocínio da Saneago e da Equatorial.