E se fosse possível ter de volta alguém que já se foi por meio da inteligência artificial? E se uma pessoa amada pudesse “retornar” ao mundo na forma de um avatar digital, preservando todas as suas “definições de fábrica” - a cor da voz, o modo de pensar, os trejeitos, a aparência? Essas são algumas das hipóteses levantadas pelo avanço das tecnologias de IA, que tensionam o debate ético sobre as novas revoluções digitais proposto pelo filósofo político, escritor e professor de Harvard Michael Sandel. Para ele, o cerne da discussão hoje está nas implicações que esses avanços trazem para a capacidade humana de distinguir o real do digital.“A maioria não ia querer isso. Porque o que estamos tratando é de uma questão ética fundamental e que vai além das considerações práticas que todos refletem no dia a dia. E se a IA vai nos levar a confundir o que é real com o digital? Será que estamos perdendo a habilidade de distinguir o real do virtual? A questão filosófica é se realmente isso estiver acontecendo, o que poderemos perder com isso? O que está em jogo? Parece que é fácil perdermos essa sensação de distinguir as diferentes realidades”, afirmou Sandel.O norte-americano ministrou palestra no sábado (22) na etos.IA - 1ª Cúpula Internacional de Ética e Inteligência Artificial, realizada pelo Governo de Goiás, por meio da Secretaria Geral de Governo (SGG). Sandel integra a lista dos principais pensadores globais da revista Prospect e é considerado o mais pop filósofo da atualidade. Ele é defensor da democratização das discussões filosóficas, mais perto das pessoas comuns. Uma amostra desse estilo foi possível ver durante a ministração da palestra. Com ampla interação com a plateia, o filósofo propôs série de provocações aos congressistas sobre a avaliação que cada um faz a respeito das implicações éticas envolvendo a IA. “A tecnologia vai mudar o que significa o ser humano? Essa é a questão fundamental que temos nessa era da IA e por isso que precisamos pensar nas novas formas de IA”, declarou. Em um dos momentos, Sandel se estendeu perguntando aos participantes o que pensavam sobre o uso de IA no cinema. As respostas foram divergentes: alguns defenderam a tecnologia como forma de resgatar, em novas produções, a atuação de artistas já falecidos; outros levantaram dúvidas éticas sobre essa prática. Também houve quem ressaltasse que a IA ainda não é capaz de reproduzir plenamente a criatividade humana, observada por exemplo na filmografia de grandes cineastas e atores.“É a ideia de autenticidade, de presença, o contato verdadeiro humano, a ideia de intuição… Tudo isso parece se perder quando falamos em trazer de volta atores ou cineastas já mortos”, disse Sandel exibindo trecho de uma entrevista realizada por ele com o ator Michael B. Jordan, que fica um bom tempo sem conseguir achar palavras para expressar o que acha a respeito da feitura de novos filmes com atores e atrizes falecidos. “A diferença que estamos pelejando para articular parece ser a ideia de autenticidade das relações humanas. Mas na verdade, quando olhamos para telas, o que desfrutamos? E quando estamos com pessoas?”, questionou o palestrante. EncerramentoAs provocações levantadas por Sandel durante sua palestra continuaram a repercutir no painel de encerramento do evento (“Como a tecnologia pode promover o desenvolvimento do Brasil?”), que reuniu o secretário de Governo de Goiás, Adriano da Rocha Lima; o especialista em governança de IA e autor do Regulamento Europeu de Inteligência Artificial, Gabriele Mazini; e o jurista Ronaldo Lemos, coautor do Marco Civil da Internet e integrante do Oversight Board da Meta. A mediação foi feita pela jornalista da Globo, Natuza Nery.Lemos afirmou que o principal risco para o país é permanecer como um mero consumidor de tecnologias desenvolvidas no exterior. “Aqui falamos português, temos diversidade intelectual e religiosa muito rica, e a IA vai se tornar a mediadora disso. Se o Brasil não tiver um mínimo de competitividade, corre o risco de ficar de fora”, disse o jurista. Para ele, o país precisa “jogar na defesa, mas também no ataque”, investindo em uma estrutura nacional capaz de competir no setor.Ao ser questionado por Natuza sobre a possibilidade de o Brasil desenvolver seu próprio “Vale do Silício”, Lemos afirmou que o país possui potencial até mais promissor, mas pouco articulado. Segundo ele, há “muita inovação”, porém mal distribuída, o que impede a formação de um ecossistema mais robusto.O secretário Adriano da Rocha Lima defendeu que o debate brasileiro não deve se concentrar na aceitação ou rejeição da tecnologia, mas em como integrá-la. “A discussão que temos de ter no Brasil não é se queremos ou não a IA”, afirmou.Questionado sobre o arcabouço regulatório da tecnologia, Mazini lembrou que, ao pensar em legislação, é preciso equilibrar segurança, inovação e proteção de direitos, ressaltando a complexidade de se criar normas em um cenário de rápida evolução tecnológica.A Cúpula Internacional, realizada entre os dias 20 e 22 de novembro, contou com a organização do Instituto Campus Party e teve o apoio Institucional da UFG e do Ceia-UFG e co-organização do Grupo Jaime Câmara e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), além de patrocínios da Saneago e da Equatorial Goiás.