Quando Hérida França Siqueira, 43 anos, soube através de uma amiga que Goiânia sediaria o curso Empregabilidade Trans - Cozinha e Voz, imaginou ser uma mentira. “Como assim? Deve ser a resposta das minhas orações ao longo dos anos”, brincou. Transexual feminina ela estudou somente até a 8ª série do ensino fundamental e nunca teve sua Carteira de Trabalho assinada. O curso, cuja formatura está marcada para quinta-feira (22), foi idealizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e veio para Goiás por iniciativa do procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho (MPT), Tiago Ranieri de Oliveira.A primeira edição do curso, que é totalmente voltado para o público travesti e transexual - homens e mulheres -, ocorreu em São Paulo no ano passado e cerca de 70% dos participantes já foram inseridos formalmente no mercado de trabalho. Desde então três outras edições surgiram na capital paulista antes de Goiânia aplicar o modelo. Para o MPT, a empregabilidade da população trans é prioridade porque devido ao preconceito e à baixa escolaridade, grande parte dessas pessoas não consegue uma oportunidade no mercado de trabalho. “O objetivo é que essas pessoas tenham acesso a um trabalho decente e produtivo, em condições de igualdade, segurança e dignidade”, enfatiza Tiago Ranieri.O formato do curso foi elaborado conjuntamente pela consultoria Txai, de São Paulo, a primeira a trabalhar com diversidade e inclusão no país; pela chef de cozinha Paola Carosella e pela Casa Poema, da poeta e atriz Elisa Lucinda e da atriz e diretora Geovana Pires. A partir de sua própria dificuldade em contratar pessoas com capacitação para atuar como ajudantes de cozinha, Paola Carossela elaborou a grade curricular. Coube à Casa Poema desenvolver palestras e rodas de conversas para fomentar a comunicação interpessoal e a autoconfiança dos integrantes do projeto. Como consultora da OIT, a Txai, efetivamente, faz tudo acontecer.Oficial técnica da OIT para a América Latina, Thais Faria explica que os recursos disponíveis para a realização do curso são oriundos de multas aplicadas pelo MPT. “O objetivo é fazer com que os danos provocados por empresas retornem à sociedade em algum tipo de projeto. A decisão sobre o que fazer com o dinheiro cabe ao representante do MPT”. Em Goiás, o convênio com a OIT foi assinado pela Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado de Goiás (Astral-GO), presidida por Beth Fernandes. “A maioria dessas pessoas está na subcidadania e no subemprego, não tem sequer Carteira de Trabalho. Por não conseguir inserção no mercado de trabalho o que sobra é a prostituição”.A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estima que 90% das travestis e transexuais brasileiros se prostituem. E isso ocorre até mesmo entre aquelas que conseguem se graduar para exercer uma profissão de alto desempenho, mas terminam sendo barradas no mercado formal pela identidade de gênero. Beth Fernandes explica que a Astral possui 250 cadastrados, mas sua estimativa é que somente na capital existam mais de mil pessoas nessa condição. “Elas não conseguem emprego nem mesmo de faxineira de supermercado”.As aulas são ministradas na Faculdade Cambury que disponibiliza espaço físico e professores. Fernanda Cunha e a nutricionista Neide Rigo, pesquisadora de espécies alimentícias não convencionais e nome respeitado do universo Panc (Plantas Alimentícias Não Convencionais), que trabalham com Paola Casorella, foram algumas das orientadoras do curso. “Eu uso um grupo de receitas como pretexto para que eles possam aprender o funcionamento de uma cozinha, mas também aproveito este momento para valorizar os elementos locais”, comentou Neide. “Eles saem prontos para trabalhar.”