A casa de Francisco João Pereira, o Chiquinho de Traíras, estava cheia quando a reportagem chegou ao antigo arraial onde esse homem de 87 anos nasceu e passou toda a sua vida. Localizada na praça central, onde no passado erguia-se uma imponente cadeia pública da qual resta apenas um pedaço de pilar de pedra como lembrança, a residência fica a poucos metros do ponto exato onde era a morada da família desse homem que conhece muito da história do povoado, que agora também é chamado de Tupiraçaba, a pouco mais de 10 km de Niquelândia, no Norte Goiano. “Nossa casa ficava aqui. Nela é que eu nasci”, aponta.No ponto em que veio ao mundo há apenas resquícios de um antigo alicerce. Aliás, essas marcas de outros tempos estão perdidas por todo o espaço onde antes se levantava o antigo Arraial de Traíras, um dos mais importantes de Goiás nos séculos 18 e 19. Fundado em 1735 por Manuel Rodrigues Tomar e Antônio de Sousa Bastos, que acharam ouro de aluvião no hoje conhecido Rio Traíras, o arraial viveu, no ciclo da mineração, seu apogeu. “Ele chegou a ter duas grandes igrejas, a de Nossa Senhora do Rosário e a de Nossa Senhora da Conceição”, informa Chiquinho. “Uma ficava aqui na praça, a outra mais ali pra cima.”Da construção da praça, restam ruínas. Apenas uma parte da nave, onde ficava o altar, ainda é visível, com suas paredes de pedra e poucas telhas antigas. Era a Igreja do Rosário. A da Conceição funcionou até os anos 1960, quando uma infiltração derrubou o telhado e suas paredes. “O som do sino podia ser ouvido a duas léguas de distância. Hoje ele está em Uruaçu”, diz Chiquinho. O que sobrou da igreja fica no meio de quintais de casas particulares, que foram cercando terrenos que ninguém reclamava. Aliás, isso não é incomum na antiga Traíras. Mais um sinal da decadência que acometeu o povoado.Esse fenômeno não é incomum. Muitos lugares que eram efervescentes séculos atrás em Goiás simplesmente sumiram do mapa ou foram tomados pelo esquecimento. Quando d. Pedro I proclamou a Independência do Brasil há 200 anos, perto da antiga Vila Boa havia dois arraiais que não existem mais: Ouro Fino, com suas ruínas escondidas por mato no meio de uma fazenda, e Ferreiro, do qual sobrou apenas a Igreja de São João Batista, ficam no trajeto do Caminho de Cora. Traíras teve o mesmo destino. Poucos muros de pedra em casas antigas e histórias do passado ainda mantêm viva um pouquinho dessa história.“Quando eu estava na presidência da Agepel, chegamos a ir lá para ver se cabia alguma ação. Mas já estava tudo muito destruído”, lembra o historiador Nasr Chaul. A dois ou três quilômetros da GO-237, que liga Niquelândia a Uruaçu, o povoado de Traíras não tem asfalto nem política de preservação. Onde ficava a velha cadeia, que pegou fogo em 1910 e nunca mais foi reerguida, foi construída uma quadra de esportes, soterrando pedras dos alicerces do prédio. “Dizem que tem uma tubulação de pedra que saía da cadeia e chegava ao rio. Dois presos tentaram fugir e acabaram morrendo debaixo da terra”, relata Chiquinho.Essas são muitas das histórias, verdadeiras ou não, que ainda dão certo charme histórico a Traíras. Muita gente jura que d. Pedro II pernoitou por lá certa vez e a casa da antiga hospedaria ainda está de pé, mesmo que bastante deteriorada. “Ela pertence a minha irmã”, afirma Chiquinho, posando na frente do imóvel. Em frente, passava a Rua da Bica, que atravessava o Córrego Ave-Maria e chegava ao outro lado do arraial, hoje apenas um pasto. “Ali está cheio de alicerces de pedra. Era pura casa. Mas já na minha época, não tinha nada em pé, não”, contextualiza o morador, cuja família está em Traíras há quatro gerações.“Meu pai e meu avô contavam que havia muitos escravos. Eu mesmo cheguei a conhecer dois deles. Ainda traziam a marca de ferro quente dos donos. Um era chamado de Pulu, era um negro imenso. Quando estava na roça e tirava a camisa, dava pra ver as marcas. Outra era a negra Secunda. Eu era criança e ela já era bem velhinha.” Traços de uma memória que não ganha registro, que vai se esvaindo. Chiquinho mostra outro imóvel, a antiga Casa de Fundição, que ainda conta com uma parede original. Mas construíram uma casa em cima desse tesouro, desconfigurando-o. A velha Traíras continua a ser destruída.A terra das emboscadas“Aqui era a terra da emboscada. Teve morte demais nessa região”. Carlos Aparecido de Castilho, o Carlinhos de Pilar, conta a história do antigo arraial, onde ele, seu pai e seu avô nasceram, com naturalidade, enquanto vai mostrando à reportagem os pontos relevantes da trajetória deste lugar fundado em 1741, um dos primeiros povoados erguidos em Goiás. Claro, foi o ouro que trouxe a maior parte das pessoas para essas cabeceiras do Rio Vermelho (não o que corta a cidade de Goiás), região cheia de veios preciosos que são explorados até hoje por mineradoras. Um passado de violência que ilustra nossa história.A região era habitada por povos indígenas e foi escolhida por escravos fugitivos para se esconderem. Com experiência em garimpo, eles encontraram, por volta de 1736, veios de ouro. Quando bandeirantes chegaram para recapturá-los, descobriram que havia muita riqueza ali. Assim nasceu o Arraial de Nossa Senhora do Pilar, em 1741. “Daqui saiu muito ouro, que ia para Pirenópolis e seguia pela Estrada Real. Não ficou nada”, lamenta Carlinhos. Dois séculos atrás, Pilar já estava em pleno ocaso com a exaustão das minas e seu isolamento era quase completo, algo que, por ironia, a salvou da completa destruição.“Foi um século de decadência. Essa retomada só aconteceu por volta de 1854. Havia mais de 200 casarões antigos, pertencentes a famílias ricas. Hoje devem ter, no máximo, 13 imóveis preservados”, contabiliza Carlinhos, que é violeiro há 30 anos na festa do Divino Espírito Santo. Os moradores também celebram Nossa Senhora do Pilar, a partir de uma imagem trazida da cidade espanhola de Saragoça por Manuel Cotrim, um proprietário local que, em apuros diante de inimigos, fez uma promessa se conseguisse escapar. A imagem original ainda está na Igreja Nossa Senhora do Pilar, mas o próprio templo não é o antigo.A velha igreja desabou no século passado e uma nova, que já tem cerca de 100 anos, foi erguida um pouco à frente da anterior. Original mesmo é a Igreja das Mercês, na saída de Pilar para Crixás e Guarinos – outros dois arraiais que já existiam duzentos anos atrás –, onde também fica um dos cemitérios de Pilar. Um segundo campo santo ficava na outra ponta do arraial, mas a igreja construída lá, a do Rosário, também não existe mais, assim como a Igreja Nossa Senhora do Carmo. “Não sei como Pilar escapou da destruição total”, reconhece Carlinhos. A cidade, porém, exibe vários lotes vagos onde antes havia casarões.Dos poucos que resistiram, está o da antiga cadeia – ainda com as grades nas janelas no nível do chão – e a Casa do Intendente. Ali, na Rua da Cadeia – que algum gênio teve a ideia de asfaltar, tapando o calçamento centenário em pedra – ficava a administração do arraial e onde se faziam o que chamavam de justiça. “Os julgamentos eram aqui”, mostra Carlinhos. “Os condenados saíam amarrados até a forca, onde eram executados, lá em frente da Igreja das Mercês. Houve muitos enforcamentos aqui porque tinha muitos crimes. E também os senhores de escravos e donos de lavras se vingavam de seus inimigos.”Pilar foi grandiosa. Sua igreja principal, da qual sobraram três sinos hoje instalados na parte externa, comportava 700 pessoas. Um imóvel, ainda preservado e que hoje é o Museu Casa da Princesa, foi construído para hospedar autoridades do Império. Há a lenda de que a própria Princesa Isabel ficou no local, atiçando a imaginação dos habitantes. Região de divisão de águas das bacias do Araguaia e do Tocantins e com outras lavras próximas, Pilar foi um arraial que tinha população negra, branca e indígena e viveu muitos conflitos. Pouca lembrança disso ficou. Já há duzentos anos atrás esses rastros eram apagados.A antiga romariaQuando D. Pedro I deu o Grito do Ipiranga, a Romaria do Divino Pai Eterno, em Trindade, sequer existia – ela começaria cerca de 18 anos depois –, mas havia um lugar onde essa fé se expressava em forma de sacrifício e devoção. A Romaria de Nossa Senhora d´Abadia do Muquém, a 47 quilômetros de Niquelândia (antigo Arraial de São José do Tocantins, então distrito de Traíras), existe desde 1748. É a mais antiga do Estado e até hoje atrai milhares de visitantes, devotos que vão agradecer graças alcançadas. Muquém, como boa parte do meio-norte goiano, tem impressa em sua história a presença de negros e indígenas.Aldemir Franzin, pároco local há mais de uma década e historiador, no livro Os Romeiros de Muquém, lista as muitas versões para o início da romaria. Uma, mais literária, é dada pelo escritor Bernardo Guimarães no livro O Ermitão de Muquém, com a narrativa aventureira de um devoto chamado Gonçalo, envolvido em um crime e que, ao se esconder, chegou ao local, dedicando a vida à festa. Já o primeiro bispo da Diocese de Uruaçu, Dom Francisco Prada Carrera, sustenta que cerca de 12 mil escravos viviam na região extraindo ouro e que, devido aos maus-tratos de seus senhores, um grupo fugiu e se abrigou em Muquém.Exploradores foram atrás dos fugitivos e perceberam que havia riquezas no lugar, o que resultou na criação de uma aglomeração, com algumas choças. No local, foi erguida a Capela de São Tomé. Um português, que começou a explorar ouro sem a devida permissão das autoridades, ao ser descoberto na atividade, foi denunciado. Para se livrar da punição, ele fez uma promessa a Nossa Senhora d´Abadia para ser inocentado. Absolvido, foi a Portugal e trouxe a imagem d´Abadia, que até hoje é cultuada na grande igreja que foi construída para a romaria. Outras versões também falam de escravos fugidos e fé europeia.Histórias que ficam em segundo plano diante da devoção de milhares de pessoas que ocupam as ruas do pequeno povoado a cada agosto. Não há vestígios da primeira capela, e mesmo da igreja construída muito tempo depois resta só uma parede. Os romeiros louvam a imagem dentro da imensa estrutura erguida no lugar, que pode comportar nada menos que 25 mil pessoas de uma só vez. Os caminhos dos romeiros hoje são asfaltados, mas 200 anos atrás, quando o Brasil abraçava sua Independência, pelas trilhas tortuosas das serras da região, muitos já levavam suas orações à Nossa Senhora d´Abadia do Muquém.Leia também:- PisQUÊ?: Corpo e mente ativos na melhor idade- Festival Samba Brasil chega a Goiânia neste domingo- Vem aí a segunda temporada da série 'Arcanjo Renegado'