Ex-ministro da Educação e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o professor de filosofia e cientista político Renato Janine Ribeiro concorda que a sociedade brasileira anda precisando de ajuda. Porém, segundo ele, esse apoio não virá dos livros de autoajuda, campeões de vendas nas livrarias nas últimas décadas. “Eles são geralmente apenas simplificações de conhecimentos mais complexos”, definiu em entrevista ao POPULAR. Na prática, são obras que tentam fornecer receita para a solução de desafios que não têm receitas. Renato Janine Ribeiro é o convidado desta terça-feira (23) do projeto Diálogos Contemporâneos, às 19 horas, no Teatro Goiânia. A entrada é franca e os ingressos serão distribuídos uma hora antes do início da palestra. Janine vai discutir com o público o tema Espiritualidade, Metafísica e Religiosidade no Brasil Contemporâneo. Ao POPULAR, ele - que diz haver hoje no Brasil uma política que, por desígnio ou inépcia, hostiliza o conhecimento e a vida - adiantou alguns dos aspectos que deverão ser abordados na conferência.O que a disparada da venda de livros relacionados à vida espiritual e à religiosidade no País nas últimas décadas revela sobre o Brasil?Não só de livros relativos à vida espiritual e religiosidade, mas principalmente de autoajuda. Creio que o grande fenômeno que tivemos no Brasil nas últimas décadas foram os livros de autoajuda, que geralmente são simplificações de conhecimentos mais complexos. Não é à toa que, se você pegar grandes filósofos, como os estóicos ou mesmo (Jean-Jacques) Rousseau, consegue tirar deles várias coisas que seriam chamadas hoje de autoajuda, mas que são de alta qualidade. Nesses livros, há muitos discursos de como ser feliz ou de que ser feliz depende apenas de você. O que tem em comum nesses textos é o fato deles serem muito egocêntricos, muito voltados para o sucesso pessoal. Qual a principal repercussão do consumo desse tipo de obras literárias?O que me chama mais atenção nesses livros de autoajuda é que grande parte deles tem a palavra “foda-se” na capa. Isso revela uma relação com o mundo muito mais da ordem do ódio do que do amor, da generosidade e do laço social. Um dos grandes problemas que temos hoje no Brasil é justamente a recomposição do laço social muito prejudicado pela pandemia. Ela fez com que as pessoas se afastassem e revelou, em algumas delas, traços de caráter infame, como não cuidar da própria saúde e da do outro. Pessoas que demonstraram desprezo pela vida dos outros. Não creio que a indústria da autoajuda, que é basicamente egocêntrica, possa ajudar a recompor esse laço social. O senhor acredita que política e religião no Brasil vão sempre caminhar lado a lado?A relação entre elas é inevitável porque a religião tem muito a ver com os valores das pessoas. Quando você faz escolhas políticas, você está fazendo também escolhas de valores. Entre os católicos, por exemplo, a repulsa ao aborto leva a um afastamento em relação a candidatos que defendem essa pauta. Muitos deles sequer citam o tema, embora tenha se tornado cada vez mais uma questão de saúde pública. É muito significativo que um ministro da Saúde que ajudou a facilitar a realização do aborto dentro da previsão legal, como no caso de estupros, como o José Serra, na campanha eleitoral de 2010, tenha usado o tema contra a então candidata Dilma Rousseff. Isso mostra que, às vezes, há uma intromissão da religião que perturba o espaço próprio da política. No livro O Afeto Autoritário, o senhor explica que no Brasil o autoritarismo se reveste de uma visão afetuosa e afetiva. Isso explica o motivo de nos tornamos terreno fértil para o populismo?Acredito que sim. Justamente pelo fato de que a política no Brasil é autoritária, mas tem esse lado afetivo. Basta lembrar dos símbolos de coração utilizados em campanhas de Antônio Carlos Magalhães, na Bahia, e de Paulo Maluf, em São Paulo. Eram políticos conservadores e reacionários, mas que tinham uma relação de afeto com seus apoiadores. Isso faz com que certas lideranças políticas conservadoras conquistem o apoio popular que não é pequeno. Em face disso, me parece que para os setores progressistas é importante a questão do afeto democrático, como eu chamo. Não se trata de apenas contestar o afeto autoritário pela razão, mas se trata de enfrentá-lo com o afeto democrático com outros tipos de afeto. Qual demanda de afeto a extrema-direita no País preencheu para conseguir chegar ao poder?Basicamente vale uma coisa que Wilhelm Reich analisou no livro Psicologia de Massas do Fascismo sobre Hitler. Ele não chegou ao poder porque mentiu ou enganou as pessoas. Hitler chegou ao poder porque atendeu uma necessidade de afeto autoritário, de obediência a um chefe. O alemão sentiu necessidade intensa de ter estabilidade emocional obedecendo alguém que lhe desse ordens. A ideia de ter liberdade e fazer suas próprias escolhas era muito esquisita para o alemão. Um dos pontos cruciais que aconteceu foi que, de lá para cá, a Alemanha foi capaz de reeducar os cidadãos e tirar essa dimensão autoritária, agressiva e ofensiva da vida das pessoas. É o que faz do país uma democracia tão sólida apesar de muito jovem. Como ex-ministro da Educação do governo Dilma, como o senhor avalia as polêmicas recentes criadas na Pasta pelo governo Bolsonaro?Considero que o Ministério da Educação tem estado muito aquém de suas missões. O melhor exemplo disso é a omissão na hora em que o Brasil todo passou para o ensino remoto emergencial. Cabe ao MEC, mesmo que a educação básica seja competência dos Estados e municípios, ajudá-los, organizá-los e dar diretrizes. Se o ministério tivesse passado protocolos de como treinar os professores do ensino público para o ensino remoto emergencial, fornecido equipamento aos professores e aos alunos e utilizado recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações para banda larga nas periferias, nós estaríamos em uma situação melhor. Sem falar dos episódios recentes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que são muito preocupantes. O senhor é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) justamente em um período em que a ciência tem sido negada no País. Quais os desafios nessa jornada contra o negacionismo?O negacionismo é um problema muito sério ainda mais porque está ocorrendo exatamente no período em que a ciência tem dado o melhor de si. Tivemos 5 milhões de mortos pela Covid-19 no mundo, que é um número alto, mas se fosse o mesmo porcentual da gripe dita espanhola, que ocorreu há um século, teriam morrido 400 milhões de pessoas. Foram salvas 98% de vidas graças aos avanços da ciência em um século. Por um lado, estamos em uma sociedade que deve à ciência a sua sobrevivência. Por outro, nosso País e os Estados Unidos tiveram número de mortos acima da média mundial. Se o Brasil tivesse tido uma política sistemática de testagem, uso de máscaras, higienização das mãos e adquirido as vacinas quando elas foram oferecidas, muitas vidas teriam sido poupadas. O senhor costuma dizer que é preocupante que o Brasil, quando discute política, a conversa se resumo à questão da corrupção. Na sua opinião, quais são os temas que devem pautar as eleições presidenciais de 2022?A questão da corrupção é importante, mas ela não pode ser a única para a política. Na verdade, o político ser honesto e competente não é mais do que obrigação. Se ele não for, deve ser retirado do cargo, sem dúvida. Mas isso não quer dizer que a disputa política deva ser entre honestos e corruptos. Ela deve ser, de preferência, entre liberais, que serão mais de direita e defenderão menos controle e políticas sociais com economia mais pujante, e socialistas ou políticos de sensibilidade social, que vão defender políticas públicas com redução da desigualdade. Nesse momento, em que o laço social ficou tênue devido aos conflitos e à política de ódio, me parece que as questões de recomposição do laço social são fundamentais. A corrupção no Brasil sempre foi pretexto para atacar o outro lado. Nunca tivemos governos efetivamente preocupados com ela. Deveríamos pensar melhor nisso. Qual a sensação, após o período de isolamento provocado pela pandemia da Covid-19, voltar a viajar pelo País e ter contato direto com os leitores?É uma sensação mista. Por um lado, ainda há medo do contágio, apesar dos cuidados e de eu já ter tomado a terceira dose da vacina. Quando vejo alguém com a máscara mal colocada, por exemplo, eu me afasto. Por outro, reencontrar as pessoas, ter contato, ver gente tem sido muito positivo. O problema é você conseguir o equilíbrio disso porque ainda temos um problema sério. Na Europa, há uma nova onda da pandemia. Não podemos morrer na praia. Abraços ainda não, mas convívio, sim.