São quase as mesmas as características de quem trabalha ou passa todos os dias pela Avenida Anhanguera: o corre-corre tumultuado dos vendedores ambulantes, o barulho intenso do Eixo e a diversidade de produtos e serviços estabelecidos em seus prédios históricos. Uma das vias desenhadas no traçado original de Goiânia e a que mais reflete a característica de seus moradores, a avenida faz o elo entre cultura, memória, patrimônio e identidade goiana.Não são poucos os veteranos da Avenida Anhanguera, aqueles que estão ali, em diferentes trabalhos, há mais de 30, 40 anos. Além de verem as transformações da paisagem da cidade, também são retratos vivos de como a avenida se reorganiza ao longo do tempo. É o caso, por exemplo, de João Batista, 67, que trabalha há décadas na Som Livre, lojinha que se mantém firme na via há mais de 40 anos.De coletâneas e mais coletâneas de discos de vinil e fitas cassete, até coleções de latinhas acumuladas desde a década de 1990, passando por instrumentos musicais personalizados, pôsteres, relógios, radiolas e televisores antigos, o espaço é ponto de resistência da Anhanguera. “Vi a avenida se transformar, a paisagem mudar, tudo de forma muito rápida. Lembro de quando não tinha o corredor do Eixão, era uma rua muito mais bonita, por exemplo. Tudo foi se modificando, diversos pontos de comércio foram fechados, mas muitos resistem”, conta Batista.Resultado do acúmulo de fornecedores e amigos da lojinha, a Som Livre hoje reúne um extenso acervo de bandas e músicos, desde o sertanejo antigo, inclusive com uma estante dedicada especialmente às cassetes populares de Zezé di Camargo & Luciano, até o rock da década de 1970 e 1980, como Depeche Mode ou AC/DC. Há ainda tocadores de fita, vinil, rebobinador de VHS e um universo infinito de TVs antigas. “É possível encontrar muitas relíquias na Anhanguera, mas tem que saber procurar. O desafio é estar sempre de olho, observando”, destaca.Próxima a Som Livre, outro ponto que segue firme há quatro décadas na avenida é a tradicional Peixaria do Gordo, perto do encontro com a Avenida Paranaíba. Por lá, revela-se a paixão dos consumidores pelos peixes de água doce, provando que nem só de pequi vive o goiano. “Traíra, lambari, tilápia, piau. Sai de tudo um pouco. Como a loja é muito antiga, temos clientes que já vem aqui toda semana há anos. É algo fidelizado”, explica o comerciante Túlio Medeiros, 26, que toca o negócio junto com o pai, Gilberto.Tradição passada de pai para filho, Túlio começou cedo na peixaria e encontrou na Avenida Anhanguera uma espécie de residência fixa. “Você se acostuma com o barulho, com o corre-corre frenético, com tudo que a via apresenta aos seus transeuntes e comerciantes. É uma rua que fala muito sobre nós, goianos. Vejo gente de tudo quanto é tipo, com uma diversidade que só existe por aqui. Não há outro lugar como a Anhanguera”, opina Túlio.CruzamentoUm pouco mais adiante, no encontro entre a Anhanguera com a Avenida Goiás, a correria toma conta de um dos cruzamentos mais desordenados de Goiânia. Pamonha de sal ou de doce, chip de celular, picolé no carrinho, cajá, acerola e pequi, compra-se ouro. Como um lugar de passagem, mas também de encontros, tem de tudo no marco histórico do centro da cidade. Foi no local que o mato-grossense Ananias Santos, 70 anos, resolveu colocar seu banquinho para trabalhar. Há décadas no ofício do clássico “comprador de ouro” que povoa a avenida, o senhor diz manter uma relação de afeto com a avenida.“É uma bagunça boa porque dá de tudo um pouco, pessoas de todas as regiões, tudo muito diverso. O problema mesmo é a segurança, já vi cada coisa por aqui”, conta seu Ananias. O veterano da Anhanguera fica até às 17 horas entregando folhetos na avenida. Depois, quando o barulho da via começa a cessar e o silêncio noturno do Centro causa desconfiança, o senhorzinho pega seu banco de madeira e desce para a casa, na Rua 55. “É quando eu percebo que a avenida tem uma vida própria”, diz. Do alto, a sombra do bandeiranteNo coração de Goiânia, entre as avenidas Anhanguera e Goiás, quem passa pelo cruzamento quase não percebe o monumento ao Bandeirante, erguido há quase 80 anos. Em seu pedestal, se destaca em letras garrafais de pichação os dizeres “Quilombo resiste”. O grande veterano da Anhanguera é símbolo de um movimento político e migratório que propunha uma Marcha para o Centro-Oeste, criado pelo artista plástico Armando Zago como presente do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito de São Paulo.Em termos gerais, a escultura em bronze tem três metros e meio de altura e ilustra a figura de Bartolomeu Bueno da Silva, armado de bacamarte em uma mão e com uma bateia típica dos garimpos na outra. Foi erguida em 1942, meses depois do Batismo Cultural da então nova capital de Goiás. Foi tombada só em 1991 como patrimônio histórico pela Prefeitura de Goiânia.Em fotografias mais antigas de Goiânia dos anos 1950 e 1960, é possível ver o monumento ao Anhanguera em um pedestal mais baixo, no centro da praça do Bandeirante rodeada por área verde. A região sofreu drásticas intervenções em seu traçado inicial, circular, por conta das alterações no sistema de transporte público de Goiânia desde o fim da década de 1970. Com a implantação do corredor viário da Avenida Anhanguera, nos anos 1990, permaneceu apenas um pequeno canteiro no qual se encontra o pedestal com a estátua. Hóspede da memóriaLá de longe é possível avistar o Goiânia Palace Hotel. A arquitetura original art déco, o rosa-choque e a plaquinha suspensa na entrada anunciam que o predinho de três andares está ali desde 1953, época em que a Avenida Anhanguera e a Rua do Lazer ainda eram locais de destaque da até então nova capital de Goiás. O ponto de memória fez 68 anos em janeiro e mantém uma relação de pertencimento com o Centro. Em partes, isso é em decorrência da visão de seus donos, a família francesa Riedberger, que adquiriu o hotel nos anos 1990.“Temos um apreço muito forte pela história e isso faz parte muito de como os franceses observam a sua memória com a cidade. O prédio é um patrimônio que precisa ser preservado”, aponta a empresária Anna Clara Riedberger, que herdou o hotel do pai e toma conta há mais de cinco anos, quando resolveu reativar o espaço. “Queremos preservar o local, mas sempre acompanhando as tendências da modernidade, com novas possibilidades de experiências”, explica.Espalhados pelo hotel, cartazes artísticos da década de 1960 e 1970 da Air France decoram as paredes coloridas. Ao lado deles, imagens da Chapada dos Veadeiros, Procissão do Fogaréu, as máscaras das Cavalhadas, de Pirenópolis, e o Parque Nacional das Emas, avisam que ainda há muito o que percorrer pelo chão goiano. “Sempre quando viajamos trazemos mimos e artigos de decoração para o hotel. A proposta é de que o hóspede se sinta em viagem por diversos países do mundo, mas que não se esqueça de que está na Avenida Anhanguera”, comenta Anna.-Imagem (Image_1.2254487)-Imagem (Image_1.2254481)-Imagem (Image_1.2254399)