Foi de forma despretensiosa, a partir dos resíduos da cana-de-açúcar, que o avô de Célio Cintra, 58 anos, começou a produzir cachaça há um século. Sem o objetivo de comercializar, virou tradição da família Cintra fazer a bebida para consumo próprio a cada safra. Genuinamente brasileira, a paixão pela cachaça tem respaldo por aqui: a bebida é considerada patrimônio histórico e cultural do país - e já conquistou o mundo. Adentrando os interiores de Goiás, a produção artesanal possui raízes na tradição familiar, com o conhecimento passado de geração em geração.A partir de um costume que começou com o avô, Célio é hoje a terceira geração que faz cachaça de alambique. De uma produção informal, surgiu a fábrica da Cachaça Cállida, fazenda localizada entre os municípios de Cristalina e Luziânia. A família de Célio saiu de Minas Gerais em meados dos anos 1960, com o sonho de seu pai de conseguir melhores oportunidades com a construção de Brasília. “Ele vendeu o sítio e tudo o que tinha para ir para lá, para a gente estudar. Como forma de retribuir, adquiri essa fazenda há quase 30 anos”, conta o produtor.Os ofícios eram outros de início. “Em 1993 teve a crise do leite. Decidimos largar o gado e fazer outras coisas”, lembra. Foi aí que seu pai sugeriu que comprassem um alambique para aproveitar o canavial que ainda tinham. “Ele falou para a gente fazer cachaça, porque as da região não estavam boas. Comprei um equipamento pequeno, porque o objetivo era fazer só para a família mesmo”, conta. Célio iniciou no ano seguinte um novo negócio com o pai, que foi parceiro e sócio até 2004, quando faleceu.A partir disso, seu objetivo passou a ser estruturar melhor a empresa para seguir o legado que a família iniciou. “Em 2010 montei um alambique mais sofisticado, mas guardando a tradição da produção. Fiz muitos cursos nesse meio tempo”, conta. E a tradição, seguirá com as próximas gerações da família Cintra? “O interesse existe, mas meus filhos ainda não estão aqui comigo. Acompanham à distância e são apreciadores do produto”, comenta Célio. “Mas acredito que no momento certo, com as coisas crescendo por aqui, eles virão compor a empresa. Estamos precisando”, continua.Duas décadasAlexânia foi a cidade escolhida pela família de Galeno Cambéba, de 67 anos, para firmar raízes e expandir a produção da cachaça da família, fabricada há mais de 200 anos. O começo da história é no Ceará, que ganhou novos rumos há cerca de três décadas. “Quando nossas terras foram desapropriadas, tínhamos que decidir para onde ir. Optamos por Goiás por uma série de fatores: logística, facilidade de água e porque as terras não eram tão caras na época”, conta.Galeno é o sétimo das oito gerações do Alambique Cambéba. “Meu filho que está à frente agora, ele que toca a empresa. Eu não faço mais nada, vivo às custas do trabalho dele”, brinca. A decisão de fincar raízes em Goiás foi acertada: hoje, a cachaça orgânica Cambéba possui mais de 30 prêmios em competições internacionais e possui fábrica moderna da reconhecida cachaça, exportada como “cachaça goiana”.Made in GoiásGoiás está entre os dez estados com mais estabelecimentos produtores de cachaça registrados, segundo o Anuário da Cachaça 2020 produzido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Na rota da aguardente, o Estado tem se destacado e levando prêmios com o que vem sendo produzido por aqui. A qualidade ganhou o selo de reconhecimento Cachaça de Goiás - Paixão de Alambique dada pela Agopcal - Associação Goiana dos Produtores de Cachaça de Alambique.O engenheiro agrônomo Luiz Manteiga é presidente da associação e proprietário da tradicional Cachaça Castelo Branco, produzida em Campo Alegre de Goiás, próximo a Orizona. “Meu avô, Sebastião Ferreira Álvares da Silva, começou a produzir quando veio para Goiás para trabalhar em Formosa, em 1918. Foi levar uma boiada de lá para Barretos e no meio do caminho, em Campo Alegre, conheceu a minha avó e se casou”, conta. A produção começou em 1942, mas apenas para consumo próprio. Alguns anos depois, em 1946, viu a possibilidade de o negócio vingar na região. “Meu tio Lázaro começou a produzir, meu tio Emídio também produzia junto com o vovô, engarrafando a Castelo Branco”, diz.Em 1968, seu pai, Luiz Manteiga Álvares de Campos, deu continuidade à produção, mesmo ano em que ganhou registro no Mapa. A tecnologia era a mesma usada pelo avô, um Engenho Estamato n°4. “Mas não tinha eletricidade. Era um conjunto locomóvel, que era alimentado pelo bagaço de cana”, conta Luiz. Em 2008, estava morando em Ribeirão Preto quando o pai o chamou para continuar a tradição da família com a empresa, agora em nova sede e com melhor parte estrutural. “Mas eu vim com um objetivo. Eu sabia que o mercado da cachaça era desvalorizado e queria fazer alguma coisa para somar o negócio da família”, relata.A associação dos produtores foi criada com a intenção de organizar o setor, estimular e garantir a produção de qualidade no Estado. Apesar de os alambiques informais ainda serem a grande maioria, a Agopcal junto ao Sebrae Nacional e Sebrae Goiás e parceria com a Emater Goiás vem elaborando projetos e ações para formalizar a produção. Célio Cintra, que é membro da associação, lembra da primeira participação em uma Expocachaça, no ano de 2016. “Fomos para conhecer e entender e voltamos com sete amostras de Goiás, encaminhadas para degustação às cegas. Delas, seis ganharam medalhas”, comemora.Terra da cachaçaA fama do município de Orizona, considerado o berço da cachaça em Goiás, vem de um longo histórico com a produção da bebida. Acredita-se que tenha começado em meados de 1700, quando o local recebeu produtores que participaram da Revolta da Cachaça em Minas Gerais e no Rio de Janeiro contra o Fisco português. Os alambiques na região são muitos, mas os formalizados ainda não. Entre eles está o da família de Wedinei Michel dos Santos, de 30 anos, à frente do negócio ao lado de seu irmão Ariel Tiago dos Santos e do pai, fundador da Cachaça Orizona, Carlos Alberto Dos Santos.“A história começou com meu bisavô, que fazia melado e rapadura, e meu avô continuou. Em 1990, meu pai começou a fazer cachaça de forma informal, do jeito dele”, conta Wedinei. Feita artesanalmente e destilada em alambique de cobre, depois do processo de descanso a bebida vai para os barris de envelhecimento, onde ficam de três a dez anos. “É tudo feito aqui, desde o cultivo da cana até a distribuição”, explica.Ele comenta que há diversos alambiques em Orizona, grande parte fruto de tradição familiar. “Tanto é que o nome da bebida que produzem é o sobrenome da família ou o nome do produtor. É algo que vem de longa data, dos antigo”, conta. Em 2015, sua família conseguiu montar uma nova estrutura para a fábrica e em 2018 registraram no Mapa. “Agora estamos correndo atrás de novos mercados por Goiás e Brasília”, diz.-Imagem (Image_1.2238818)-Imagem (Image_1.2238824)