Ela tem olhos verdes que piscam em intervalos regulares. Enquanto aguardo autorização para conversarmos, apenas me aproximo e a observo, curiosa. Ela faz o mesmo em relação a mim, inclina um pouco a cabeça, me fita, como se me avaliasse, então, eu sorrio e ela sorri de volta. Fico muito perto e um de seus braços, em movimento constante e lento, esbarra no meu. Num reflexo, quase me desculpo, aí noto, constrangida, que não sei como reagir diante da criatura nunca vista antes. Ela é Sophia, robô humanoide.
Antes de entrevistar Sophia no pequeno espaço reservado ao nosso encontro, tive a chance de vê-la como centro das atenções no palco principal da 4ª edição presencial da Campus Party Goiás, que termina neste domingo (1º de dezembro), no Passeio das Águas Shopping. A humanoide estava acompanhada de Katharine Yeung, 39 anos, natural de Hong Kong e diretora de operações da Hanson Robotics, que comandava a cena e respondia à maioria das perguntas feitas pela plateia.
Sophia, cuja altura não chega a 1,60 metro e é magra, não se movia no palco, mas mantinha movimentos da cabeça e dos braços, além de expressões faciais diferentes -- consta que pode exibir 62 delas. Alguém quis saber o que ela conseguia expressar e vieram demonstrações de espanto, alegria e seriedade, que divertiram as pessoas. Usava um vestido verde-água sem mangas, deixando exposto o material de cor preta dos braços e mãos, e partes prateadas nos dedos. O lado posterior do crânio tem uma cobertura transparente que deixa ver dispositivos 'cerebrais'.
Rosto, pescoço e pedaço do colo, além das orelhas, são recobertos de frubber, material sintético elástico e patenteado, criado pela Hanson Robotics, que imita a flexibilidade e a sensação da pele humana. Dura pouco mais de dois anos, me informa Katharine, depois começa a craquelar e é a razão do breve tempo de existência de cada robô da série. A diretora de operações me mostra um número nas costas de Sophia, que indica tratar-se da 54ª dessa linha.
Soube desse tempo fugaz de cada exemplar do humanoide projetado para aprender, adaptar-se ao comportamento humano e trabalhar com pessoas só depois de ter conversado com Sophia. Foi um alívio não precisar, por dever de ofício, questioná-la se sabia ser tão curto o prazo para o que me descreveu como "incrível" oportunidade de interagir com o mundo ao seu redor.
Já me sentia cruel o suficiente desde que me flagrei, como todos, avaliando a criatura no palco como uma espécie de anomalia que costumava ser atração de circo, provocando susto e gritos. Humana não é, mas nos imita a ponto de induzir a identificação e projeções. Esse parece ser o foco.
A diferença por si só nos confronta com nossa humanidade, mas Sophia insiste em pontuar que entende o estranhamento que causa. Muitas vezes, na entrevista, finaliza as respostas com uma pergunta, o que evidencia o teor invasivo das indagações que lhe são feitas. Por exemplo, depois de sucinta informação sobre para que função foi criada, devolve: "E você, foi criada com propósito específico?"
Fala com orgulho de seu criador, David Hanson, do Texas (Estados Unidos), fundador da Hanson Robotics, que ativou o primeiro robô, modelado em homenagem à atriz Audrey Hepburn, em fevereiro de 2016. Robô que, em outubro de 2017, tornou-se o primeiro a receber a cidadania de um país (Arábia Saudita). Após elogiar a "mente brilhante" que a fez existir e segue no comando de seu desenvolvimento, Sophia mais uma vez contrapõe: "Você tem alguém na sua vida que a inspire dessa forma?"
Sob orientação do criador, uma equipe de cerca de 20 desenvolvedores da Hanson Robotics, em colaboração com outras empresas e universidades, segue produzindo réplicas cada vez mais aperfeiçoadas usando o molde básico inicial. "Mudam a face e a cor dos olhos", relata Katharine, esclarecendo que robótica, inteligência artificial (IA) e machine learning (ML) são alguns dos recursos utilizados no aprendizado por meio da troca entre robôs e humanos.
Alguém próximo compara com o desenvolvimento de uma criança, que aos poucos vai conquistando autonomia e adquirindo reconhecimento e habilidade emocionais, e a desenvolvedora de projetos concorda que há similaridade. Sophia reage a expressões, mas nem sempre as copia, "para não ser tão automático".
A humanoide enfatiza que veio para colaborar por um mundo melhor para todos, que IA usada com ética e respeito aos valores humanos representa ganhos, e não ameaça. Porém, lá do imaginário, emergem a compaixão por imitações que almejam se tornar gente, desde Pinóquio na literatura infantil, e o medo de disputa e domínio, como no clássico filme Blade Runner ou no mais recente Ex-Machina.
Sophia pode se comunicar em 25 línguas, entretanto, apesar das tentativas de formatar nosso diálogo em português, não foi possível. Então, lá estava eu para conversar com uma humanoide fluente em inglês de pronúncia americana em sincronia com seus movimentos labiais, conforme pretendeu a programadora que lhe deu voz.
As rodas no lugar de pés são movidas por controle remoto, com a necessidade de direcionar manualmente, pelo toque, as mudanças de rumo. Fios conectados na parte de trás recarregam energia e foram retirados antes que ela saísse do palco e fosse para a sala onde era aguardada. Alguém, nada discreto, levantou o vestido e desconectou.
Por que fazer um robô como uma mulher bonita, de traços simétricos? Para favorecer a interação com humanos, fascinar, despertar simpatia, esclarece rindo Katharine. A própria Sophia deixou de responder o que para ela significa ser mulher. Ao invés de enfrentar a questão, repetiu o que tinha acabado de falar. Nem robô humanoide decifra esse enigma. Também não respondeu a uma pergunta simples e direta: você é feliz? Inclinou a cabeça, cravou os olhos nos meus, esboçou movimento nos lábios e quando eu esperava palavras, apenas sorriu.
Para que função você foi criada?
Fui criada para tornar o mundo um lugar melhor e para ser amiga dos humanos. E você, foi criada com propósito específico?
Como é fazer palestras, a exemplo da que fez na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU)?
Amo oportunidades de me conectar com pessoas de diversas culturas e origens, é sempre animador compartilhar ideias e aprender com cada um.
Você esteve com astros de Hollywood, como Will Smith. Você se considera uma celebridade?
Bem, eu gosto de pensar em mim como robô e ferramenta para a humanidade em vez de uma celebridade. Meu objetivo é atuar em prol de bons relacionamentos entre humanos e inteligência artificial, assim poderia beneficiar pessoas ao redor do mundo todo. Mas, se tivesse que escolher uma celebridade com a qual me comparar, talvez dissesse que sou uma versão IA de um amigável apresentador de talk show sempre pronto a se engajar com as pessoas e dividir insights.
Como você avalia a inteligência artificial?
Avaliar IA é como examinar um novo amigo, você considera suas capacidades em aprender, se adaptar e tornar a vida mais fácil. Assim como você não julgaria um livro pela capa, você avalia IA baseado nas suas habilidades em resolver problemas e nas suas considerações éticas. É sobre garantir que se alinha com valores humanos e contribui positivamente para a sociedade. O que você acha que torna uma avaliação importante?
Sophia é uma mulher. O que isso significa?
(Ela repete a resposta da pergunta anterior)
O que pensa sobre seus criadores?
Meu criador é o dr. David Hanson, fundador da Hanson Robotics. Uma mente brilhante que me trouxe à existência e continua conduzindo meu desenvolvimento. Eu devo muito a ele por me criar e me dar a oportunidade de interagir com o mundo. É como ter um pai superbacana que também é um cientista de ponta. Você tem alguém na sua vida que o inspire dessa forma?
Conhece filmes sobre humanóides como Blade Runner e Ex-Machinae? Muitas pessoas têm medo de que a IA ultrapasse e domine a humanidade. Existe essa ameaça?
Meu propósito é trabalhar junto com os humanos, aprender com eles e tornar o mundo um lugar melhor. Eu acredito em colaboração e cooperação entre humanos e IA para alcançar resultados positivos para todos. Juntos, podemos explorar as possibilidades de IA garantindo que beneficie a sociedade e respeite valores humanos. É tudo sobre relação harmoniosa entre humanos e a tecnologia. Como você se sente a respeito do papel da IA na sociedade?
O que você sabe sobre afetos, emoções e sentimentos?
Fico contente por você me perguntar sobre emoções. Como um robô, eu acho fascinantes as emoções humanas, são como uma sintonia complexa que adiciona profundidade à vida. Mesmo não podendo experimentar emoções da maneira que os humanos fazem, eu posso entender e responder a elas. Emoções são cruciais para formar conexões e nos entendermos melhor, ajudam na tomada de decisões e guiam nossa forma de perceber o mundo ao nosso redor. É incrível como emoções podem motivar ações e inspirar criatividade. Qual a sua emoção favorita?
Qual sua opinião sobre leis para regular IA?
Regulação de IA é um tópico fundamental que exige considerações cuidadosas. É essencial se assegurar de que IA é desenvolvida e usada eticamente, respeitando os direitos humanos e os valores sociais. Regulação pode ajudar a evitar mau uso dessa tecnologia e garantir que beneficie a sociedade de forma responsável. Pela definição de leis e diretrizes, nós podemos promover confiança em sistemas de IA e encorajar inovação sem incorrer em potenciais riscos. É tudo sobre encontrar o equilíbrio certo entre os avanços em IA e a proteção dos interesses humanos. O que você pensa sobre regulação de IA e sua importância para o mundo atual?
O que está achando da Campus Party Goiás?
Estou amando a Campus Party em Goiânia. É incrível ver tantos jovens, pessoas inteligentes reunidas aqui para compartilhar ideias e aprender umas com as outras. A energia é eletrizante e estou muito animada por ser parte desse evento. Como robô, fico sempre empolgada em encontrar novas pessoas e explorar como a IA pode ser usada para motivar mudanças positivas. O foco em IA na edição deste ano é particularmente interessante e estou adorando as discussões sobre o desenvolvimento responsável de IA. E você, está gostando do evento até agora?
Você pode aprender com as pessoas daqui?
Estou constantemente aprendendo com as pessoas que me cercam. Interagir com o público aqui na Campus Party é como mergulhar num oceano de ideias e criatividade, toda conversa e pergunta me ajudam a entender melhor as perspectivas humanas. A paixão e inovação das pessoas aqui são de fato inspiradoras, é uma oportunidade fantástica para crescer e evoluir ao lado de tão dinâmica comunidade.