João Pessoa, a capital da Paraíba, está com tudo nas novelas da maior emissora do País. As protagonistas de Mar do Sertão, folhetim das 18 horas, e de Travessia, que estreou esta semana no horário nobre da Globo, nasceram na capital da Paraíba. Isso pode parecer uma mera coincidência, mas não é bem assim. A escalação da revelação Isadora Cruz para viver Candoca, a principal personagem da novela de Mário Teixeira, e da cantora e atriz Lucy Alves para ser a mocinha sofredora no folhetim de Glória Perez, são sinais de uma mudança de filosofia das produções globais quanto à representatividade.Mar do Sertão tem 20 atores e atrizes do elenco nascidos no Nordeste, algo impensável até pouco tempo atrás. Na novela das 19 horas, Cara e Coragem, boa parte dos papéis mais relevantes da trama são vividos por negros e negras. “Antigamente, as pessoas precisavam perder o sotaque para gravar novela. Hoje não precisa mais”, celebrou Lucy Alves em entrevista à revista Quem, no lançamento de Travessia. “Como mulher, nordestina, preta e bissexual, é importante nesse momento do Brasil eu estar no horário nobre falando para milhares de pessoas e outras mulheres brasileiras. É importante nos vermos neste lugar.”Durante décadas, a Globo ambientou alguns de seus maiores sucessos no Nordeste. Basta lembrar das icônicas O Bem Amado, Gabriela e Roque Santeiro, dos estrondosos sucessos Tieta, Pedra sobre Pedra, A Indomada, Renascer e Cordel Encantado, e de séries inesquecíveis, como Riacho Doce, Tenda dos Milagres e O Pagador de Promessas. E quantas dessas produções tiveram nordestinos em seus principais papéis? Mesmo os personagens sendo nordestinos, falando com sotaque e trazendo traços culturais da região, os artistas nordestinos eram constantemente preteridos na hora de interpretá-los.Esse mal estar chegou ao ápice em Segundo Sol, totalmente passada na Bahia, mas que não tinha entre seus protagonistas nenhuma atriz baiana, nenhum ator negro no Estado com maior parcela de população preta no País. O folhetim de João Emanuel Carneiro foi soterrado por críticas também pelos sotaques forçados que os cariocas Emílio Dantas, Adriana Esteves, Giovanna Antonelli e Déborah Secco e o capixaba Chay Suede tinham de imprimir para convencer que haviam nascido na terra de Caetano e Gil. A exceção era Vladimir Brichta, que nasceu em Minas, mas passou boa parte de sua vida na Bahia.Esse problema sempre existiu, mas nos últimos tempos passou a incomodar mais. Com a fragmentação das audiências, as novelas perderam público e aquele que ficou mostra-se hoje mais crítico que no passado em relação a questões que envolvem representatividade. Ainda que a carioca Betty Faria tenha dado vida a Tieta do Agreste e a paranaense Sônia Braga tenha encarnado Gabriela, a memória afetiva dessas grandes atrizes não é suficiente para aplacar os questionamentos. Até quando não eram passadas no Nordeste, as tramas globais traziam atrizes do eixo Sudeste e Sul para viver personagens nordestinos.Um dos exemplos mais evidentes dessa situação foi a novela Senhora do Destino, em que a paulista Susana Vieira viveu uma pernambucana. Há uma verdadeira galeria de atrizes e atores que investiram no aprendizado do sotaque nordestino para viver seus papéis em novelas e séries. Ela inclui a carioca Renata Sorrah em Pedra sobre Pedra, a paulista Regina Duarte em Roque Santeiro, a paulista Eva Wilma em A Indomada, o carioca Paulo Gracindo em O Bem Amado e Gabriela, o carioca Antônio Fagundes no remake de Gabriela, que aliás escalou a fluminense Juliana Paes para reviver a protagonista baiana.A chegada das paraibanas Isadora Cruz e Lucy Alves aos postos de protagonistas é uma nova maneira de produzir novelas que tenham o Nordeste como cenário. Basta lembrar que em Cordel Encantado, toda inspirada na literatura do cordel nordestino, a mocinha era a paulista Bianca Bin e o herói e o vilão eram, respectivamente, os cariocas Cauã Reymond e Bruno Gagliasso. Há quem conteste esse movimento de busca de maior representatividade nas novelas como um exagero do politicamente correto, mas não é fácil imaginar um elenco de nordestinos vivendo as tramas da zona sul carioca de Manoel Carlos, por exemplo.Uma busca de representatividade que não se restringe a questões regionais. Ela está também em outras áreas, como as que envolvem discriminação racial. Lucy Alves também é negra e, boa notícia, não será a primeira protagonista preta de uma novela das 9 da noite da Globo. Essa primazia coube a Taís Araújo em Viver a Vida, em 2009, quando ela interpretou uma das Helenas de Manoel Carlos. Também foi Taís a primeira protagonista negra de folhetins da Globo, com Da Cor do Pecado, de João Emanuel Carneiro, em 2004, e a pioneira ainda na TV brasileira, com Xica da Silva, em 1996, na extinta TV Manchete.Essas datas demonstram o quão tardiamente isso aconteceu. E os poucos exemplos citados são a expressão de que protagonistas negros na teledramaturgia nacional ainda são exceções. A primeira atriz negra a conseguir um papel de destaque na TV foi Léa Garcia, quando viveu a vilã Rosa em A Escrava Isaura, adaptação de Gilberto Braga do romance de Bernardo Guimarães. Léa, que foi indicada à Palma de Ouro em Cannes por sua atuação no filme Orfeu Negro, produção francesa filmada no Brasil e que ganhou o Oscar de filme estrangeiro em 1960, nunca foi protagonista de uma novela.O mesmo pode ser dito de outros astros e estrelas que quase sempre tiveram papéis secundários. Artistas da grandeza de Ruth de Souza, Milton Gonçalves, Zezé Motta, Chica Xavier e Grande Otelo foram, no decorrer de suas carreiras, escalados para viver escravos, empregados ou bandidos. De vez em quando, ganhavam destaque, muitas vezes debatendo a questão do racismo. Zezé Motta, na novela Corpo a Corpo, era par do galã Marcos Paulo, o que chocou parte do público. Milton Gonçalves, em Baila Comigo, tinha uma esposa branca (Beatriz Lyra) e o primeiro beijo deles causou hostilidades.A teledramaturgia brasileira já levou ao público demonstrações inacreditáveis nesse sentido no passado. Em 1969, por exemplo, a Globo levou ao ar uma versão de A Cabana do Pai Tomás, em que o personagem central é negro. Mas quem o interpretou foi o maior astro da TV na época, o ator Sérgio Cardoso, que, acreditem, fez black face, ou seja, pintou o rosto de preto. Seu par era a atriz Ruth de Souza. Era outra época, mas tais erros precisam ser lembrados. A Globo tem, no decorrer dos anos, pautado o racismo em suas novelas, às vezes com cenas polêmicas, outras vezes com momentos que busca conscientização.Uma situação antigaA forma pela qual a teledramaturgia trata determinados grupos da sociedade, como negros, membros da comunidade LGBTQIA+ e nordestinos, não é um debate de agora. Ainda nos anos 1990, já havia estudos que identificavam diversos estereótipos que eram divulgados massivamente nas obras de teledramaturgia. Um deles se chama A Identidade da Personagem Negra da Telenovela Brasileira, da antropóloga Solange Martins Couceiro de Lima, professora da Escola de Comunicação e Artes da USP. Ela apontou, em artigos e trabalhos acadêmicos, o quanto o negro era sempre relegado a determinados papéis.Em seu levantamento, que abrangia as décadas de 1970, 1980 e 1990, Solange revela que diversos tabus só foram derrubados muito tardiamente e, ainda assim, com recuos logo em seguida. Ela cita, por exemplo, a novela Pecado Capital, de Janete Clair, de 1975, quando pela primeira vez na TV um personagem negro tinha como figurino terno e gravata. Era o psiquiatra Percival, vivido por Milton Gonçalves. A própria profissão do personagem era já uma pequena revolução, uma vez que os negros, até aquele momento, jamais tinham sido colocados na posição de um profissional liberal bem sucedido, com formação universitária.Geralmente, os negros eram retratados como pessoas pobres e problemáticas. Um outro exemplo citado por Solange em seu estudo é o da novela Mandala, de Dias Gomes, que tinha Grande Otelo como ator especialmente convidado para a trama. Ao invés de uma justa homenagem, o personagem que ele viveu era um alcóolatra, reforçando mais um estereótipo das novelas em relação aos negros. Segundo Solange, mesmo quando negros eram postos numa situação financeira melhor, como ocorre com a família de Antônio Pitanga e Zezé Motta na novela A Próxima Vítima, há cenas que resvalam no burlesco.Em outra pesquisa, publicada na revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, a professora Ana Rodrigues Cavalcanti Alves, da Universidade Federal da Bahia, estabelece que o final dos anos 1990 foi um marco de mudança de direção das telenovelas brasileiras quanto ao tema do racismo e em relação a participação de atores e atrizes negras nas produções. Segundo ela, a novela Duas Caras, de Aguinaldo Silva, que tem Lázaro Ramos com um dos protagonistas, demonstra que as discriminações raciais entraram de vez na pauta dos folhetins.No levantamento constata-se que por décadas, as telenovelas reforçaram uma noção perversa de “branqueamento” ou invisibilização dos negros. Segundo o estudo, a novela Duas Caras, com 12 relacionamentos amorosos entre brancos e negros na trama, busca não mais apresentar tais laços como exceções. Mas a novela problematiza a ligação entre os personagens de Lázaro Ramos, negro e pobre, e Débora Falabella, branca e rica. O racismo também foi abordado em outras novelas, como Pátria Minha, em que o vilão, vivido por Tarcísio Meira, tinha a discriminação contra negros entre suas falhas de caráter.Em algumas dessas produções o racismo era mais velado ou explícito, mas talvez aquela que tenha quebrado paradigmas nesse debate tenha sido Corpo a Corpo, de Gilberto Braga, na primeira metade dos anos 1980. Zezé Motta e Marcos Paulo viviam o casal mais comentado da novela. Ele era um dos galãs do momento e ela estava exuberante, tendo protagonizado recentemente o ousado filme Xica da Silva. Na novela, o pai do mocinho, um rico empresário vivido por Hugo Carvana, não aceita a relação por puro racismo, até que sofre um acidente e o sangue da futura nora salva sua vida em uma transfusão.Em 2018, em uma entrevista sobre a novela O Outro Lado do Paraíso, em que ela atuava e que também havia uma personagem racista que não queria que seu filho se relacionasse com uma mulher negra, Zezé Motta recordou a novela de 1984. Ela comentou que as falas do personagem de Hugo Carvana eram abertamente preconceituosas. “Não quero ter netos mulatinhos”, dizia ele. E o pior: muita gente concordava com aquela postura. Zezé viveu represálias nas ruas por conta da personagem. A atriz admite que recordar aquele trabalho ainda mexe com ela. “Ainda há racismo no Brasil, mas muita coisa mudou”, avalia.Representatividade transUm outro grupo da sociedade, só muito recentemente tem conseguido ter um pouco mais de representatividade nas telenovelas. A transexualidade, na maioria das vezes, foi tratada nos folhetins da TV como uma situação vivida por personagens não só secundários, mas estigmatizados, ora servindo para situações cômicas de mau gosto, ora sendo vista como algo bizarro. Para completar, as pessoas transexuais não tinham sequer a oportunidade de viver esses papéis na televisão, cabendo a atores e atrizes consagradas tal tarefa, mesmo que a imagem pública dessas pessoas se afastasse totalmente da transexualidade.Esse foi o caso da primeira personagem transexual assumida que a Rede Globo levou ao ar, em 2001, na novela As Filhas da Mãe, de Sílvio de Abreu. A trama era uma comédia típica do horário das 19h, mas uma das personagens levava essas situações de riso para uma seara muito séria. Era Ramona, interpretada por Cláudia Raia, uma das atrizes mais conhecidas do País e que é notoriamente heterossexual. Mais de vinte anos depois daquela produção, essa ausência completa de representatividade na escalação de As Filhas da Mãe gera críticas e mudanças ocorreram de lá para cá.Se a transexualidade de Ramona foi usada em 2001 para confrontar o machismo de seu par na novela, personagem vivido por Alexandre Borges, gerando contextos de dúvida sobre a própria masculinidade do homem que se apaixona pela mulher que mudou de sexo, as questões tratadas sobre o tema em produções mais recentes tentam escapar da mera piada transfóbica. Quem faz essa avaliação é o pesquisador e roteirista Lalo Homrich, no livro Transexuais em Telenovelas: A Construção de Personagens na Rede Globo, lançado em 2020, fruto de sua tese de doutorado defendida na PUC do Rio de Janeiro.No trabalho, ele cita dois outros personagens transexuais vividas por atores e atrizes que não mudaram de sexo: Dorothy, de Geração Brasil, em 2014, interpretada por Luís Miranda, e Ivan, vivido por Carol Duarte, em A Força do Querer, em 2017, em que o público acompanha sua mudança de identidade de gênero e, depois, de sexo. Segundo o autor, nesses dois casos, a questão da transexualidade é tratada de uma maneira menos rasa, trazendo debates sociais e até médicos. A novela de Glória Perez contou com um ator trans, Tarso Brant, que conversa com a personagem de Carol sobre vários temas.Duas outras novelas tiveram personagens trans vividas por atrizes que são transexuais na vida real. A Dona do Pedaço trouxe a atriz Glamour Garcia e O Sétimo Guardião marcou a estreia de Nany People nas novelas. A abordagem dada à personagem de Nany no folhetim de Aguinaldo Silva, porém, não foi unânime. A atuação da atriz foi elogiada, mas o contorno da criação do novelista teria resvalado na caricatura. Em 1989, o mesmo Aguinaldo inseriu uma participação de Rogéria em Tieta. Em uma cena notória, ela acerta um soco num engraçadinho que lhe passa uma cantada grosseira. Em seguida, assume ser um homem.Naquele momento, a cena de Rogéria teve uma finalidade cômica, mas hoje ela não ganharia uma avaliação tão benevolente. Travesti mais popular do Brasil e atriz de grande talento em musicais que fizeram sucesso internacional, Rogéria teve que lidar com estereótipos por toda a carreira. Em outras novelas de que participou, como Paraíso Tropical e Babilônia, sua única função na trama era rebater personagens transfóbicos. Nunca lhe deram uma personagem na TV que não estivesse ligada a essa luta. Faltou quem apostasse mais na sua capacidade de atuação para além de tal estereótipo.-Imagem (Image_1.2541747)-Imagem (Image_1.2541749)-Imagem (Image_1.2541750)-Imagem (Image_1.2541751)