“Aracy Carvalho era responsável pela seção de vistos do Consulado do Brasil, em Hamburgo, onde trabalhou como secretária em 1938. Nessa qualidade, ajudou um grupo de judeus a obter vistos para o Brasil, além de ajudá-los a superar dificuldades financeiras antes de sair da Alemanha para o Brasil.” É assim que a única brasileira a receber o título de Justa Entre as Nações, honraria dada a quem lutou para proteger vítimas do nazismo, é descrita pelo Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Jerusalém, a mais respeitada instituição de preservação de dados históricos sobre o genocídio dos judeus na Segunda Guerra.A trajetória singular dessa paranaense de Rio Negro, nascida em 1908, transformou-se no enredo da nova série da Rede Globo, Passaporte para a Liberdade, que estreia nesta segunda-feira (20). O trabalho é uma superprodução toda falada em inglês e com elenco vindo de vários países, que tem a missão de contar um pouco dessa história que foi reconhecida pelo Museu do Holocausto em 1982. Foi o primeiro título dessa natureza dado a alguém nascido no Brasil e depois dela só o diplomata Luiz Martins Dantas de Souza, embaixador brasileiro em Paris durante a Segunda Guerra, mereceu figurar no Mural dos Justos.A participação de Aracy na concessão de vistos a perseguidos do regime de Hitler ainda antes da eclosão da Segunda Guerra, quando leis passaram a discriminá-los e após os tumultos do que ficou conhecida como a Noite dos Cristais, em 1938, quando milhares de judeus foram agredidos e mortos, tem reconhecimento internacional. O Yad Vashem fez uma pesquisa prévia, colheu depoimentos e reuniu documentos que comprovam seus atos de heroísmo. A instituição lembra que um casal judeu, os Bertel-Levy, foram escondidos por Aracy na própria casa naquele momento dramático e ela auxiliou no embarque de fugitivos.Essa história, contada por meio de testemunhos dos descendentes dos sobreviventes que chegaram ao Brasil graças ao auxílio de Aracy – o que é registrado no documentário Aracy: A Brasileira que Desafiou o Nazismo, de Laís Duarte, e no livro Justa, de Mônica Schpun – passou a ser contestada. Os pesquisadores Fábio Koifman e Ruy Afonso, que se debruçaram sobre as biografias de outras personalidades que tiveram atuação destacada para salvar judeus, afirmam que nem Aracy nem outras pessoas do Consulado em Hamburgo fizeram algo que não estivesse nos trâmites diplomáticos normais da época.Apesar da controvérsia, o diretor da série, Jayme Monjardim, e o autor, Mário Teixeira, preferem confiar na história aceita até aqui e referendada pelos Museus do Holocausto de Jerusalém e Washington. Nessa narrativa, outro personagem fundamental surge na vida da ex-secretária consular: um de seus chefes, o então cônsul-adjunto em Hamburgo, médico e diplomata, João Guimarães Rosa. Esse encontro pode ser considerado um dos mais felizes não só para duas pessoas que se apaixonaram, se casaram e permaneceram juntas por quase 30 anos, até a morte do autor, em 1967, mas também para outras áreas.Antes de se conhecerem, tanto Aracy, quanto Guimarães Rosa, tinham sido casados. Ao ir para Hamburgo, ela, filha de pai alemão e fluente no idioma, tivera um casamento de cinco anos com Johann Eduard Ludwig Tess, com quem teve um filho, Eduardo. Já o escritor unira-se a Lygia Cabral Penna em 1930, com quem teve suas duas filhas, Vilma e Agnes. Em 1937, quando passaram a trabalhar juntos, Aracy já estava divorciada e Rosa também já não vivia um casamento efetivo, nem mesmo levando a família para a Europa. Eles iniciaram a união em 1938. Antes desse enlace, a carreira literária de Rosa mal existia.Até aquele momento, o autor mineiro havia publicado contos esparsos em revistas e publicado um volume de poesias (o único da carreira), chamado Magma, em 1936, que chegou a ser premiado pela Academia Brasileira de Letras. Guimarães Rosa serviu em Hamburgo até 1942 e chegou a ser detido pelo governo de Hitler após o rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha durante a Segunda Guerra. Ele e outras personalidades foram retidos na cidade de Baden-Baden até serem “trocados” por membros do corpo diplomático alemão, também detido no Brasil como represália.Depois disso, Rosa e Aracy moraram em Paris e Bogotá. De volta ao Brasil, ele começou a se embrenhar no sertão, lançando seus principais livros durante seu casamento com a ex-secretária. Em 1946, veio à tona Sagarana, um dos mais influentes livros de contos da literatura brasileira. Dez anos depois, é lançada a monumental trilogia Corpo de Baile e a obra-prima Grande Sertão: Veredas. Aracy acompanhou todo esse processo criativo, ajudando-o a organizar os originais e sendo uma leitora e interlocutora relevante. O Anjo de Hamburgo, como Aracy ficou conhecida, também abençoou a carreira de mestre Rosa.Um romance interditadoExiste um conjunto de textos de Guimarães Rosa que permanece na penumbra. Os diários pessoais do autor mineiro, que compreendem exatamente o período que ele passou no Consulado em Hamburgo – e no qual conheceu Aracy, a quem chamava carinhosamente de Ara –, teve sua publicação interditada várias vezes por parte dos herdeiros. A única cópia disponível desse verdadeiro tesouro ainda inédito pode ser consultada na Universidade Federal de Minas Gerais, e só chegou até lá após uma complexa troca de originais entre a viúva Aracy e um amigo do casal, Henrique Gregori, que xerocou essa parte dos cadernos.Xerocar é o termo mais correto para esse caso, uma vez que Gregori, que seria editor do prestigiado selo José Olympio – onde Rosa publicou seus livros em vida – foi o presidente da empresa de fotocopiadoras Xerox no Brasil. Por laços de parentesco, o material acabou indo parar na posse de uma poeta, Henriqueta Lisboa, que o doou ao acervo da UFMG. No que é conhecido como Diário Alemão, dentro dos Cadernos de Guimarães Rosa, estão as impressões do escritor sobre aqueles tempos sombrios, suas opiniões sobre o nazismo que presenciava na Alemanha e menções à mulher com quem viveria pelo resto da vida.Esse material quase foi publicado há 20 anos, quando a Editora Nova Fronteira, então detentora da obra de Rosa, quis trazê-lo a público, em uma edição comentada. O projeto parou, porém, no valor astronômico pedido por uma das filhas do autor, Agnes. Em entrevista à revista Piauí, em 2006, ela admitiu que não queria a publicação, apesar de já haver a concordância de sua irmã, Vilma, e da viúva Aracy. Os filhos de Agnes, que morreu em 2016, e Vilma, que tem hoje 90 anos de idade, detêm parte dos direitos da obra do autor. Os netos de Aracy, que morreu aos 102 anos, em 2011, cuidam da outra metade.De alguma maneira, aqueles dias em que Aracy e Rosa iniciaram seu romance e atuaram juntos em Hamburgo continuam, de certa forma, misteriosos para grande parte do público. Os pesquisadores que já tiveram acesso aos diários do autor escritos naqueles anos afirmam que ele foi discreto quanto a sua vida afetiva com sua colega de trabalho, assim como quanto a sua participação na emissão de vistos de turistas a judeus que, na verdade, buscavam fugir da sanha assassina dos nazistas. É impossível que Rosa desconhecesse o que Aracy fazia. Muito provavelmente ele a auxiliou naqueles gestos humanitários.