No longínquo ano de 1954, um churrasco foi oferecido para os participantes do 1º Congresso Nacional de Intelectuais, que ocorria em Goiânia. Fazia sol naquele dia de fevereiro de 67 anos atrás e, numa das rodinhas de conversa formadas na confraternização, o escritor Jorge Amado, o artista plástico Frei Confaloni, a folclorista Regina Lacerda e a historiadora Amália Hermano estavam envolvidos e levavam um papo animado. O italiano Confaloni, com semblante descontraído, mostrava algo a Jorge Amado, sob o olhar atento de Amália. É o primeiro registro da presença do autor em Goiás. Uma relação que tornou-se estreita.Exatos 20 anos atrás, o Brasil perdia o mais popular de seus escritores, nome de nossa literatura que teve suas obras publicadas em quase 60 países e traduzidas para quase 50 idiomas. Às vésperas de completar 90 anos de idade, o autor de tantos clássicos morreu após sofrer duas paradas cardíacas em Salvador, cidade que traduziu como ninguém para o mundo. Nessa longa jornada, seu caminho passou por Goiás várias vezes, como naquele evento de 1954. O jornalista Francisco Barros, que localizou a imagem descrita acima, defendeu uma dissertação na UFG em que pesquisou a realização do encontro em Goiânia.“Não tenho registro se Jorge Amado esteve em Goiânia antes de 1954, mas ele atuou intensamente para a organização daquele evento, que teve como secretário-geral o romancista Miécio Tati, que era ligado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro)”, afirma Francisco. lembrando a militância política de Jorge Amado, que se elegeu deputado federal por São Paulo em 1945 pelo antigo Partidão, após ser perseguido pela ditadura Vargas. Durante o Estado Novo, alguns de seus livros chegaram a ser proibidos e queimados. Em 1948, ele teve seu mandato parlamentar cassado, levando-o a se mudar para Paris.“Foi Amado quem convidou o já aclamado e mundialmente conhecido poeta chileno Pablo Neruda para participar do congresso em Goiânia, como relata no seu livro de memórias Navegação de Cabotagem. Ele revela a sua influência sobre o evento. Diz que também convidou para participar Gabriel d’Arbussier (líder da esquerda franco-senegalesa)”, contextualiza Francisco. “Amado assinala que o evento esteve ‘sob a égide do pecê brasileiro (PCB)’ e do qual ele era ‘capa-negra do Partido, ditava as ordens’.” Segundo Francisco, aquele encontro “serviu para sedimentar os vínculos do escritor com Goiás”.Amália Hermano recebeu Jorge Amado e sua esposa, Zélia Gattai, muitas vezes em sua casa da Rua 24, quase esquina com a Av. Universitária, no Centro de Goiânia. Havia um vínculo pessoal entre as duas famílias. O marido da historiadora, o desembargador Maximiano da Mata Teixeira, havia sido colega de colégio de Jorge Amado na Bahia, amizade que conservaram por toda a vida. Foram Maximiniano e Amália que levaram o autor baiano à cidade de Goiás para conhecer a poeta da casa da ponte. “Eu testemunhei aquele encontro”, orgulha-se Marlene Velasco, diretora do Museu Casa de Cora.“Ele foi a Goiás para conhecê-la, passaram horas conversando”, relata Marlene. Isso aconteceu em 1977, antes de Cora ganhar fama nacional com a publicação de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade. “Ela tinha acabado de ler Terras do Sem-Fim e Gabriela. Falaram de literatura e de uma ida dela a Ilhéus”, lembra. Eles passaram a ter uma correspondência regular. “Consegui reunir todas as cartas que trocaram”, salienta a diretora do museu. “Dos doces posso dizer que são sublimes e divinos e ainda digo pouco. (...) Sinto-me feliz de contar com mais uma amiga em Goiás”, escreve ele em uma delas.Novos olharesFoi no internacionalmente prestigiado Centro Hospitalar de Oftalmologia, em Paris, em uma consulta, que Jorge Amado descobriu que a solução para um verdadeiro pesadelo para um escritor estava em Goiânia. O autor sofria de uma doença degenerativa na mácula ocular e tinha uma pequena ferida, chamada de membrana neovascular, que estava lhe tirando a visão central. Ele estava ficando cego. Seu médico francês não teve dúvidas em encaminhá-lo para a capital goiana, onde havia profissionais especializados em uma inovadora técnica cirúrgica que poderia reverter a situação.“Estivemos com esse médico da França em um encontro em Boston (EUA) e ele sabia que usávamos o chamado laser verde para corrigir esse problema”, diz o oftalmologista Marcos Ávila, chefe da equipe do Centro Brasileiro de Cirurgia de Olhos (CBCO), de Goiânia. “Com essa técnica, cauterizávamos a lesão sem prejudicar a mácula ocular, preservando os olhos”, explica. O resultado do tratamento foi muito satisfatório. “Foi um tratamento mais longo. Jorge Amado vinha a Goiânia, no início, a cada 40 dias para receber as aplicações. Mas ele recuperou a visão e terminou o livro que estava escrevendo.”A relação médico-paciente evoluiu, com a convivência, para uma amizade. “Sou até citado no livro Navegação de Cabotagem, em que ele conta suas memórias”, destaca o oftalmologista, que também comanda as equipes de outro centro de referência na área em Goiânia, o Cerof, ao lado do Hospital das Clínicas da UFG. “Ele era um grande conselheiro, um homem vivido em muitas áreas, com muitas experiências políticas. Ele me ajudou a ter um olhar mais holístico sobre o mundo, para além do universo da medicina, onde a gente acaba ficando muito envolvido.”Marcos Ávila ri com uma equivalência simbólica na relação de proximidade que manteve com Jorge Amado até o fim da vida do escritor. O oftalmologista devolveu a visão ao escritor e recebeu em troca uma nova visão do mundo. “Acho que posso dizer que aconteceu isso sim”, concorda o médico. Antes de atender o autor baiano, ele havia lido Capitães da Areia, mas admite que não era um leitor muito assíduo. “Estou sempre envolvido com as publicações médicas, revisando artigos, acabo que fico um pouco sem tempo. Mas Jorge Amado me deu essa visão mais universal.”Uma eleição e dois amigosEm 23 de outubro de 1975, uma eleição na Academia Brasileira de Letras colocou o escritor goiano Bernardo Élis e o ex-presidente Juscelino Kubitschek concorrendo pela mesma vaga. Élis ganhou, mas não contou com o apoio do amigo Jorge Amado. “Eles já se conheciam pelo menos desde 1945, quando Élis participou como delegado do 1º Congresso Brasileiro de Escritores, em São Paulo”, informa o jornalista Francisco Barros.“No livro Navegação de Cabotagem, Amado diz: ‘Na eleição em que foi eleito, não pude votar em Bernardo apesar da admiração pelo escritor e da estima pelo companheiro’.” O voto em JK foi um protesto contra a ditadura militar, já que o ex-presidente era um inimigo do governo.Jorge Amado, ainda que já não pertencesse ao Partido Comunista, era opositor daquele regime. “Nessa mesma obra, Amado também define Élis como ‘excelente contista, companheiro de lides partidárias em nosso tempo de bardos comunistas’”, diz Francisco. O baiano era imortal da ABL desde 1961, quando já havia lançado seu livro mais famoso, Gabriela, Cravo e Canela. Depois ainda viriam obras como Dona Flor e Seus Dois Maridos, Tenda dos Milagres, Tieta do Agreste e Tereza Batista, Cansada de Guerra.-Imagem (Image_1.2297659)