Basta dizer que não me projetei ao cume desse monumento literário de um só fôlego”Terminei a escalada de 827 páginas de A Montanha Mágica, edição da Companhia das Letras. Seria contraditório, senão ultrajante, contar os dias empenhados na leitura de um romance que questiona a própria ideia de tempo como um valor absoluto. “Que órgão possuímos para perceber o tempo? Onde está escrito que o tempo é mensurável? Para a nossa consciência, não é”, problematiza o protagonista Hans Castorp, a quem o narrador de Thomas Mann chama ironicamente de herói, e de quem já ensaio alguma saudade.Basta dizer que não me projetei ao cume desse monumento literário de um só fôlego. Fui intercalando com outros livros e assim, num hiato do ar seco e gelado do sanatório para tuberculosos de Berghof, me caiu às mãos Dores em Salva, de Elimário Cardozo, vencedor do Jabuti na categoria Contos, editado pela intrépida Patuá. Minha associação talvez soe delirante, mas vi um diálogo entre as duas obras, em que pese a exuberante diferença de forma e pretensão de uma e outra.Mann se serve da travessia de Castorp para a vida adulta para formular um tratado sobre o pensamento que, em decomposição, iria redundar no mais violento século da nossa história. Nesse percurso lento, faz breves porém profundos mergulhos em questões filosóficas, como o papel da doença na nossa absurda (aqui pisco para Camus) condição existencial. E, nesse cenário onde a febre vira quase uma estética, Mann insinua que o espírito, por vezes, precisa de um corpo trincado para se ouriçar; que é justamente na ranhura da saúde que a consciência se infiltra, como se a dor abrisse frestas para o mal-estar da alma vislumbrar alguma esperança de ser elaborado.Sei não, mas me parece exatamente esta a proposta de Elimário Cardozo nos 12 textos de Dores em Salva. Neles, aquilo que lateja física ou mentalmente dá não só o ritmo, mas o sentido das narrativas. Hábil, o contista alterna vozes com extrema naturalidade, da terceira para a primeira pessoa, do masculino para o feminino, às vezes no mesmo conto – caso do atordoante Terapia. Um fluxo de consciência bem mais amigável que os de Joyce se vê em Eu, Lucilene e Martha, no qual a confiança na narradora vai encolhendo não por desvios morais ou vácuos da memória, mas pelo galopar da demência.Se em A Montanha Mágica há uma sugestão quase maliciosa de que a doença seduz — porque nela o sujeito é poupado do mundo hostil e autorizado a viver alheio ao vagar dos dias, protegido; em Dores em Salva os personagens também são “filhos enfermiços da vida”, mas não encontram o mesmo consolo. A dor e a doença, ao contrário, empurram-nos para essa existência nada sexy. Com o espírito em efervescência, já não é mais possível distinguir entre o real e o imaginário, caso de Infestação, quando uma mulher busca documentar a existência dos vermes que, ao fim, “primeiro roerão as frias carnes do seu cadáver”.Essa pulsão de vida a partir da dor impõe aos textos de Elimário Cardozo uma cadência de thriller, mas, como o alívio de um aguilhão, o lirismo e um léxico regional de Pernambuco eclodem aqui e ali, num conjunto que faz desse livro uma preciosidade. Observem as múltiplas camadas do último conto, que empresta nome ao livro. O autor é médico geriatra. Estou com 52 anos. Não quero impor pressão, o tempo, ensina Mann, tem um curso muito particular. Mas se o Elimário não verter outro livro até minha velhice, vou ao Recife consultar com ele. Medicina e literatura são meras ilusões de controle, mas me servem muito.