Recém-nascido tem cara de joelho. Com o tempo, vai se desinchando, tomando formas e bem-apessoando-se. Para a mãe, o risco da depressão puerperal já terá passado. Convidam-se amigos e parentes para tomar o xixi da criança. Que festa!Todo mundo diz: que gracinha! Bilu-bilu! É a carinha da mãe! Um sortimento de palhaçadas pueris.No entanto, Dolores era um desarranjo congênito. A cara de joelho, com o passar dos dias, ganhou aspecto de joelho esmagado, sem contorno que pudesse hastear um figurino humano. No dia de tomar o xixi, os convivas olhavam assustados a perguntar: gente, tá certo isso?! Depois disfarçavam, sem lugar para pôr a cara, tentando se recompor da rata.Dolores cresceu sem reconfiguração. Caçoavam que ela era feia quando pequena. Cresceu, ficou grande. Maior que todas as primas. Espaço de sobra para distribuir a feiura. A única coisa de bonito eram os olhos azuis. Foi por ela que nasceu o ditado: olhos azuis em gente feia só servem para realçar a feiura.Afora a má aparência, Dolores era exemplar. Ótima aluna, boa colega, rodeada de amigos. Chegou a época dos namoricos, das baladas e ela sofreu um baque. Ninguém queria namorá-la, beijar na boca, nem mesmo no escurinho do cinema, nada. Entretanto, muito requisitada para sair com as amigas. O propósito, talvez, não fosse nobre. Contrapeso para a aparência das amigas. Para realçar a boa aparência que elas já detinham. Fato é que até alguém de aparência meia-boca, ao lado dela, tornava-se uma top model. Por isso que era tão requisitada.De mal com o espelho, mas tentando ficar de bem com a vida, Dolores lembrou-se da fábula do Patinho Feio, que retirou de dentro da própria feiura um cisne branco de porte real, com a mais nobre plumagem.Contratou um célebre consultor de imagem. Ele lhe disse que o trabalho era árduo, mas prometeu solução. Dolores tirou um período sabático para ficar por conta. A primeira providência foi uma bariátrica que a reduziu pela metade, embora o desarranjo em nada tenha diminuído. Retirou as sobredobras de peles do pós-cirúrgico, corrigiu o prognatismo mandibular, fez bichectomia, enxerto nas maçãs do rosto, silicone nas mamas, lipo no abdôme com transferência de tecido adiposo para o bumbum chulado, ressecção de costelas para modelar a cintura, peeling para retirar as marcas de cravos e espinhas, brow lift para levantar os sobrolhos, depilações cava funda, implante capilar nas entradas, por fim, harmonização facial no capricho. Mexeu em tudo. De original só ficou o pecado.Finalmente, sex to u! A hora e a vez de Dolores fazer a reentrada na densa atmosfera do jet set. Inverteram-se os papéis. Convidou as amigas para a balada, para que sua própria beleza se realçasse ainda mais. Todas estavam coriscando pelo resultado de tanto custo e sacrifício. A bordo de um modelito mais justo que a política de Deus, recheado de fendas e transparências por todas as vertentes, o que fazia dela uma inconfundível sereia de luau.Efeito devastador. A plateia parou na dela, portadora da síndrome da beleza adquirida. Entrada triunfal, quicando. A baba dos guris podia ser cortada de tesoura e as meninas adentavam-se de inveja. Naquela noite, Dolores tomou chá de cogumelos alucinógenos no chifre do unicórnio, cafungou carreirões de poeira do éden. Dançou doidamente, até criar folga nas vértebras. Quase se evaporou na estreboscoapia das luzes. Exibiu ostensivamente seu lado homerengo. Beijou de baba e língua as bocas mais cobiçosas, que antes lhe foram sonegadas. Esbaldou-se em sucções aos obeliscos mais agudos e lesmoentos, em fila. Por fim, já no romper da alvorada, em plena festa existencial, foi vista entrando no Porsche do milionário Serial de Almeida Killer, para um impacto secreto.Transcorreu um vazio tormentoso. Eram três da tarde, já na instância da segunda-feira, quando a mãe de Dolores interrompeu os movimentos circulares do terço e o sibilar contínuo das ave-marias, sob o impacto da notícia que mãe nenhuma merece receber.