Não, mano Maneco. Definitivamente, não. Você não podia ter deixado o jumento Furreco comer a tampa do balaio. Este balaio foi de nosso avô, herdado por nosso pai. Foi feito de bambus trazidos da Terra Santa, do períbolo da Basílica do Santo Sepulcro, pelo finado padre Agapeus. Um balaio sem a tampa não pode honestamente ser chamado de balaio. É uma obra imprópria, incompleta, desvirtuada. E, sendo um balaio sagrado, como este, inverte tudo de santo que nele havia.Neste balaio, mano Maneco, nosso avô pôs os filhos para dormir enquanto estavam nos cueiros. As pestes e os bichos peçonhentos passaram por fora e bem distante. Não fossem os dotes sacrossantos do balaio, a gente sequer existia. Nosso pai teria morrido de catapora, caxumba, coqueluche, sarampo, meningite, rubéola, paralisia, ventre virado, espinhela caída ou tosse de cachorro. Quando não, por ofensa de cobra ou picada de escorpião. E, sem a precedência de nosso pai, nossa existência, oh, babau!Quando nosso pai nos criou, foi o mesmo cuidado, mano Maneco. O balaio ficou pendurado na trave da casa, subido e descendo por uma corda. Por estarmos suspensos e protegidos, nas noites aziagas, nada pôde nos atingir. Sete filhos. Varões e varoas! Veja só, nossos tios e tias não legaram estirpes. Todos os rebentos se foram ainda nos cueiros. Eles não detinham o balaio sagrado de nosso avô, que foi herdado pelo primogênito, nosso pai. Nós fomos os escolhidos por este balaio para domar esta terra de joios, urtigas e espinheiras.O que será de nós, mano Maneco, agora que o balaio está sem tampa? As pestes e as peçonhas não respeitarão nossa família. Nossos filhos mofarão dentro dos cueiros, nossos animais morrerão em situações inexplicáveis. As pragas do Egito cairão sobre nós, e nossa estipe, que era a escolhida para charruar os tabuleiros, vai se findar como aqueles que não herdaram os favores e a graça divina.Comer a tampa de balaio sagrado, por um quadrúpede, é um vilipêndio incontornável. Não quero estar por aqui e, se estiver, não quero estar vivo quando nosso pai souber que você deixou aquele jumento infame comer a tampa do balaio. Ele vai endoidecer e bradar feito um trovão despedindo-se da temporada de chuvas. O jumento, com o poder adquirido, vai criar asas. Asas malditas de morcego. E, com o dom perverso de voar, espargirá urina fétida sobre o chão, como a chuva ácida do final dos tempos. Será a ruína de nossa terra, mano Maneco, por você, ter deixado o jumento Furreco comer a tampa do balaio.De agora em diante, nosso pai não será mais o profeta da chuva. Porque a chuva não terá mais sua estação propícia. Não será o beato benzedor que afugenta os demônios travestidos de animais e ferrugens, brocas e antracnoses nas espigas. As forças transcendentes de suas orações perderam-se todas, com a tampa do balaio virando estrume de jumento. Nossa mãe será vencida pelo mofo que, de vez em quando, insiste em subir pelas suas pernas e meu pai o espanta para longe, pela força das orações e os abanos da tampa do balaio.O mundo, com este balaio sem tampa, não vai subsistir. As estrelas cairão do céu que nem pitangas maduras. A lua cairá que nem uma jaca ou melancia nascida em árvore troncosa. O fogo adormecido no interior do planeta se elevará em ondas, feito vômito da terra sobre si mesma, até que tudo se perca. Um tufo de fumaça escura subirá aos céus, puxada pelo jumento voador, sufocando os seres divinos e seráficos que residem nos páramos sagrados.Jesus renunciará ao compromisso de descer à terra e promover a busca e a salvação das pessoas retas e puras de coração. Porque será impossível achar o que é coração puro e reto no cinzeiro medonho que resultará da maldição do jumento que comeu a tampa do balaio.O projeto de nosso avô, de nosso pai e também de Deus foi destroçado, mano Maneco. Não conheceremos o reino de Deus. Não nos deliciaremos com suas promessas e ambrosias. Você, descendente de Caim, deixou o jumento comer a tampa do balaio!