Faz três anos que não trabalho em redação, mas sigo escravo de certos cacoetes do ofício. Um deles, miserável, é confiar na efeméride como força de notícia. É um pensamento mágico, que deposita no calendário a esperança de que, por providência divina ou obra do acaso, fatos jornalisticamente relevantes surjam. Como a realidade corre indiferente ao marketing, o que assistimos, com raríssimas exceções, é um espetáculo de clichês a cada data celebrativa.Sou tão canalha que, de forma premeditada, reincido na insensatez dessa fé jornalística. Li um livro umas semanas atrás e, como a trama flertava com a morte, pensei, com a empáfia característica dos autoconfiantes: “Vou escrever sobre ele no Dia de Finados”. Mas o mundo, vocês sabem, gira alheio às conveniências pessoais e minha coluna, quinzenal, caiu uma semana depois da data. Renunciei à ideia ruim? Não, mas, menos por mim e totalmente pelo autor, peço em liminar o perdão de todos.Vamos lá. O realismo fantástico mostrou ao mundo a viabilidade de um texto expressar inquietação estética, convulsionando a forma, sem abrir mão de um discurso político. É impressionante ler Juan Rulfo e identificar, claramente, a fonte dessa vitalidade da literatura latino-americana. Em Pedro Páramo, escrito em 1955, foram inaugurados todos os elementos que depois viriam a nos encantar em Gabo, Llosa e tantos outros. São livros que não terminam de acontecer quando chegamos à última página. Múltiplos significados ficam reverberando, nos convidando ao retorno vitalício.Escritor mexicano cuja densidade é inversamente proporcional ao volume da obra, que soma 400 páginas, Rulfo promove uma libertação da mentalidade linear. Em Pedro Páramo, narradores se sucedem sem aviso para narrar a vida a partir da morte, sem ser fúnebre. Mais importante do que entender, é saber que se transita num terreno de segredos, que não se revelam numa primeira leitura. A aparente confusão é uma provocação. É preciso comprar o jogo de Rulfo para ir capturando o sentido.Há ainda um quê de valorização da memória, que talvez seja o único patrimônio do oprimido capaz de sobreviver à violência de caudilhos. Sob a lógica capitalista, ruína são lugares que deixaram de ser produtivos, que não criam mais riqueza medida por dinheiro. Comala é assim. Um lugar aparentemente morto onde a vida, irônica, pulsa nos cadáveres. Rulfo lembra que, mesmo nesses rincões proscritos pela ganância, há um manancial de memórias e vivências que merecem ser consideradas, sob pena de empobrecermos todos.Grosso modo, a trama fala de Juan Preciado, um sujeito que promete à mãe no leito de morte ir em busca do pai, Pedro Páramo. A linearidade para por aí, na arrancada do romance. O que se sucede é a alternância de tempos e vozes num espaço que tem um dono, que se impõe à força, e a tensão dos que ali vivem (ou seria morrem?) se confunde com uma paz, talvez a única possível. É muito latino-americano que coronéis disponham de mulheres e terras enquanto derramam sangue, livre de qualquer freio da civilização. É igualmente nossa a habilidade de contar isso com uma prosa de enorme carga poética. Não deixem de observar como Rulfo costura a narrativa fazendo do clima e da temperatura um personagem eloquente, nos jogando na atmosfera dos acontecimentos.Leiam esse cara antes que sejamos nós os celebrados de 2 de novembro.