Gustavo Palmeira

Tô com dor nas costas, dei um mau jeito e parece que até o tecido mais profundo da minha escápula está contorcido em nós. Só que o que mais dói não é o corpo em si. Apesar da dor ser física, o que mais machuca é não poder fazer nada sobre ela. Estou sem dinheiro para o tratamento de shiatsu que já me ajudou nos outros momentos de dor corporal. A vida de home office infelizmente tem essa desvantagem a longo prazo, seu corpo vai sucumbindo à letargia do sedentarismo. Você chafurda dentro da sua própria casa.

A dor de não poder fazer nada piora quando me vem à mente que eu sou uma pessoa organizada, fiz um grande investimento no fim do ano passado mas deixei uma reserva para queimar caso o mercado audiovisual ficasse escasso. Não fui imprudente com os gastos, mas fui imprudente em ajudar amigos quando eles precisaram. Dois já me devem há quase três anos, valores exorbitantes que me deixariam ter a tranquilidade de viver alguns meses sem a preocupação de chegar trabalhos.

Já os pressionei o quanto pude, mensalmente, chegando ao ponto deles reclamarem da minha cobrança. Um outro terceiro amigo me deve menos e “só” há um ano e meio, mas ele igualmente sai pela tangente toda vez que é cobrado. Eu os ajudei quando estava no meu ápice, fazendo muito dinheiro, sem prever que compraria um apartamento que queimaria as minhas reservas financeiras. E muito menos sem prever que eu teria dor nas costas para ter de resolver aos 29 anos de idade. A vida boêmia é cara e nenhum deles está disposto a abrir mão dela para retribuir a minha solidariedade.

É um choque ver que o ditado é verdade: quando você ajuda um lascado, quem se lasca é você. E quando você ajuda um lascado que ama, por querer que ele sobreviva nesse caos urbano que é o Século 21, o amor se dissipa, sobra o calculismo de não explodir com a pessoa para que ela não deixe de pagar por despeito das suas palavras ásperas.

Foi isso que aconteceu com um ex-ficante, que, numa recaída em que ele dormiu aqui em casa, precisou de uma roupa para ir trabalhar e levou minha única camisa de marca, perdendo-a tempos depois. Quando fui cobrá-lo, ele disse que a culpa também era minha, afinal, eu emprestei a peça de roupa para ele. Depois de eu tentar insistir no ponto de que fiz aquilo para ajudá-lo, ele se irritou e me mandou catar coquinho (só que com palavras mais duras). Isso foi há dois anos e, do nada, neste último fim de semana, eu o encontrei em uma festa e ele pediu meu pix para pagar a camisa que perdeu.

Fiquei incrédulo, a ficha havia caído! Dois anos depois, mas caiu. Agora é torcer para todas as fichas caírem e eu finalmente poder tratar essa maldita dor nas costas. Alguém aí tem recomendação de shiatsu?

Alguém aí tem recomendação de shiatsu?

Crônicas e Outras Histórias

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Matéria - Crônicas

Em Pequim, na China, um sino teria sido alimentado com o corpo vivo da filha do fundidor imperial, sacrificada para garantir que o tom do sino fosse perfeito. Em uma cidadezinha da Baviera, na Alemanha, os sinos da igreja teriam começado a tocar sozinhos, à meia-noite, anunciando a morte de um jovem doente em um celeiro. O local acabaria por converter-se, por causa disso, em um local de peregrinação.Em uma pequena cidade da costa adriática da Itália, grandes sinos da torre de um mosteiro franciscano também teriam tocado sem interferência humana. A polícia fez investigações, colocou até gravadores escondidos, mas não identificou qualquer pessoa, animal ou rajada de vento, e os concertos duraram meses, deixando os moradores insones, irritados e amedrontados.Em uma vila de pescadores na Escócia, um sino que por 460 anos fora tocado manualmente às 22 horas e, havia 40, ganhara um mecanismo que tornou o processo automático, teria repentinamente soado à meia-noite, à uma, às duas e às três da manhã. Descobriu-se que uma falha mecânica havia alterado a contagem do tempo, mas também que o homem responsável por instalar o mecanismo morrera naquela meia-noite extraordinária, aos 90 anos.Em uma catedral da Polônia, “a morte de um cônego costumava ser prevista pelo toque espontâneo” de um grande sino. Já em vilarejos da região de Gasconha, na França, os sinos teriam tocado espontaneamente quando as relíquias de um santo foram levadas, por engano, por um rapaz que recolhia trapos e metais para vender.“O folclore de toda parte está cheio de sinos que tocaram por vontade própria”, conta Lyall Watson em seu livro A Natureza das Coisas – A Vida Secreta dos Objetos Inanimados. E ele conta ainda que em Quioto, no Japão, existe um sino de bronze verde, com 74 toneladas chamado de A Voz de Buda, com “a boca tão próxima do solo que, quando golpeado com o tronco suspenso de um grande cedro”, “produz um som misterioso, penetrante e solene”.“É tão triste, tão perdido, tão desolado, que cada nota que se repete lentamente vem como um suspiro”. Lyall Watson narra tão poeticamente o soar de um sino que dá vontade de ouvi-lo. Com ele fico sabendo que A Voz de Buda é (ou era?) um dos maiores do mundo e que oito entre os 12 maiores são russos, “produtos dos excessos imperiais do século 18”.Parece que por acaso, mas não por acaso, a seção do livro em que o autor conta essas e outras tantas histórias interessantes sobre sinos (palavra que vem do latim signum: sinal, marca), chama-se Coisas do Momento.Um sino gigante é coisa sobre a qual se fala muito no momento em Goiás. É que Trindade, cidade conhecida pelas romarias católicas de devoção ao Divino Pai Eterno, vai ter em breve o maior do mundo. Produzido na Polônia, o sino, que tem mais de 4 metros de altura e pesa 55 toneladas, a altura de uma girafa e o peso de dez elefantes, já está vindo para o Brasil, para ser instalado na Basílica de Trindade.O Vox Patris (A Voz do Pai), juntamente com outros sinos menores, teria custado, segundo reportagens que li, 17 milhões de reais, e sua aquisição já foi questionada, há quatro anos, na operação Vendilhões, promovida pelo Ministério Público.A chegada de A Voz do Pai tem sido festejada e acompanho as notícias com curiosidade, pois não só acho sinos objetos fascinantes, como simbólicos. Um sino tão grandioso em Goiás seria o sinal de algo? Da enormidade da fé?Igrejas e homens sempre gostaram de coisas grandes, de imponentes monumentos, basílicas, catedrais, palácios e arcos do triunfo, embora – é inevitável lembrar – a chegada do deus menino, tenha sido anunciada apenas por um “sino pequenino, sino de Belém”.

Sino, coisa do momento e sinal de nosso tempo

A vida adulta já é um Umbral para a perda de amigos por diversos motivos, alguns casam e somem, outros viram lobos solitários e tem uns que só viram babacas mesmo. Os motivos são diferentes para o desencanto. Assim, a inocência sobre amizades que atravessam as areias do tempo vai sumindo pouco a pouco, conforme a sua roda de amigos se sedimenta e vira pó.

E para piorar vem uma megalópole e fica oferecendo empregos bem remunerados para os meus amigos do peito. São Paulo vem chamando diversas pessoas da minha confiança para ir morar lá, a única coisa que elas têm de fazer é vender a alma e se acostumar com uma vida cinza. Dando adeus à vida praiana carioca, elas conseguem seu tão almejado salário-para-uma-vida-independente.

Queria que todo mundo conseguisse se dar bem nessa cidade tão linda e tão precarizada que é o Rio. Mas o dinheiro aqui está que nem vento, ninguém vê a cor. O capital circula tão pouco nas mãos da massa trabalhadora &nbsp;que já se espalham movimentos de protesto para que aqui volte a ser a capital do País.

Muitos cariocas culpam a crise financeira da cidade à criação de Brasília. Maldizem Juscelino Kubitschek e criam uma realidade paralela de que o país era muito melhor na época que o Rio era capital. Dos jovens aos mais velhos, o sentimento de ser injustiçado pela perda do posto de capital do País é profundo.

Acho que a coisa só piora quando São Paulo, rival número um dos cariocas, se consagra cada vez mais como a capital financeira. E é aí que eu me junto a eles. Não por querer que o Rio volte a ser capital, mas porque eu quero que meus amigos continuem aqui, já não consigo mais contar nos dedos quantos amigos se mudaram para lá em busca de um futuro melhor.

A minha sorte é que na revolução tecnológica a minha profissão de roteirista foi muito resguardada, está ok trabalhar para a empresa de uma cidade e morar em outra. Por isso várias das minhas contratações dos últimos anos foram de produtoras paulistas. Se não fosse a possibilidade de enviar os arquivos facilmente e ter reuniões por Google Meets num piscar de olhos, provavelmente eu já teria me mudado atrás do dinheiro que só a cidade da garoa pode prover, caso você não seja herdeiro.

Enquanto isso, eu sigo aqui, numa cidade que vai ficando cada vez mais vazia de amigos e cheia de saudades, entre arquivos enviados e reuniões virtuais, torcendo para que o Rio, um dia, pare de ser apenas um cenário bonito e volte a ser um lugar onde as pessoas &nbsp;que amo queiram ficar. Até lá, São Paulo, você me paga. E não é em dinheiro não. É em amizade, em presença, em vida compartilhada. E, se não pagar, pelo menos me manda um abraço de longe, porque, no fim das contas, a gente até se acostuma com a distância, mas nunca com a falta.

Você me paga, São Paulo

Poetas amam viagens, dizia Henri Michaux, o belga-francês, autor de Um Bárbaro na Ásia. E prosseguia: “Prefiro as viagens de trem, porque o devaneio é inspirado nas paisagens que desfilam...”A paixão por viagens me acompanha desde a infância, e os percalços do caminho, se diluem nas descobertas que me aguardam.Entretanto, antes de cruzar a fronteira do desconhecido, embarco em uma jornada interior. Construo um mapa mental dos lugares que almejo conhecer, guiado por autores que os habitaram e os visitantes que os imortalizaram em livros.Assim fiz com várias cidades brasileiras e, com mais afinco, com a Ásia. Li com entusiasmo autores japoneses, coreanos e chineses, e a realidade se revelou um fascinante contraponto à ficção, enriquecendo meu Diário do Extremo Oriente.Agora, o sul da Itália me chama... Retomo o ritual que antecede nossas viagens: recriar o país em minha mente, revisitando a literatura italiana, familiarizando-me com a língua, a música e os vídeos que me aproximam da alma do povo italiano.Mergulho em livros, guias e romances por meses, tecendo um mosaico de imagens, sons e sensações que me conduzirão pelas ruas das cidades sonhadas. Mesmo com interesses diferentes, minha mulher e eu nos complementamos na viagem (e na vida).A cada passo, a linha de fronteira entre a realidade e a fantasia se amplia, e a expectativa se transforma em antecipação. Sei que a paisagem real nem sempre espelha o retrato que construí, mas a magia dessas contradições me encanta e me leva a questionar meus próprios valores, superando preconceitos e ampliando a compreensão sobre as características das diferentes culturas. Mesmo no Brasil, é inegável que uma viagem pode impactar o viajante ao mostrar-lhe realidades díspares, em paisagens diversas, diferentes condições socioeconômicas e formas diferentes de viver a vida.Particularmente, prefiro viagens de longa duração, em geral que duram meses, sempre precedidas por essa profunda imersão cultural que tem mostrado o encanto das diferenças entre ficção (e poesia) diante da realidade vivida no país estrangeiro. Durante a preparação para conhecer o sul da Itália, me impressionaram particularmente a abordagem de J.W. von Goethe, com sua Viagem à Itália (1786-1788) e as descrições da mineira Isabela Discacciati (2024) – escritores que, mesmo separados por dois séculos, me oferecem novas lentes para desvendar a pátria de Dante, Torquato Tasso e Lampedusa.A jovem autora Isabela, mineira de Barbacena que vive na Itália, combina sua experiência pessoal com pesquisas em turismo, arquitetura e história, resultando em um texto saboroso com seu livro Para Além das Margens: A Itália de Elena Ferrante.A um mês de fechar as malas, acompanho Isabela pelas ruas de Nápoles e pela ilha de Ischia, tão bem descritas na tetralogia de Ferrante que começa com A Amiga Genial, aliás, tema de uma série televisiva.Essas experiências de preparação para a viagem, as aventuras e descobertas no sul da Itália serão temas de hoje em diante, pelas próximas semanas. Arrivederci!

A alma do viajante

Há anos ouço essas palavras, e não foi diferente nesta semana: “Déeez! Nota déeeez! Trabalhando, a televisão ligada, a voz inconfundível e sem nome lista as notas das escolas de samba do Rio de Janeiro. “Como será quando ele morrer? Haverá um conclave? Ou será substituído por inteligência artificial?”, penso com meus teclados.

O editor de Notícias do jornal, Marcos Bandeira, demonstra indignação diante do anacronismo da cena: debaixo do calor carioca, muita gente sentada em cadeiras de plástico, dessas que são patrimônio dos melhores (e piores) botecos, papel e caneta nervosos, anotando e fazendo contas. Muito mais simples um tablet ou celular na mão.

Só que, penso eu, a tecnologia tiraria a única graça da coisa, que é torcer, esporte nacional favorito. Enquanto escrevo, três colegas param em frente à tevê para acompanhar parte da apuração. A cada dez, comentam como se fosse um clássico Vila Nova e Goiás.

O que mais me chama a atenção é como os jurados concluem a pontuação que cada agremiação merece. A escola coloca milhares de passistas e ritmistas na Sapucaí, imagina a comissão de frente, enfeita e ensaia a porta-bandeira e o mestre-sala, toma conta da pista com carros alegóricos cada vez mais suntuosos e tecnológicos, canta letras indecifráveis. Daí vem o cidadão e tasca: “9 ponto 9”.

De um lado, uns vibram; doutro, socos na mesa, indignação. Humilhação total: 9.8. Inaceitável. “Como pode! Tirar dois décimos em evolução?!?! É roubo!”.

Tento adivinhar o que um jurado captou entre o grito do Neguinho (“Olha a Beija-flor aí, geeente!) e a aparição da Paolla Oliveira que custou um décimo da bateria da Grande Rio, o que decidiu a parada.

Não tem VAR, câmera lenta, replay, debate. A nota é revelada fria, definitiva, irrevogável, separando o primeiro do segundo lugar, divorciando meses de esforço e dedicação da glória campeã.

Revejo os vídeos na internet e no streaming em busca de uma cuíca desafinada, chocalho atravessado, tamborim fora de tom. Pauso, repito, mas meus olhos e ouvidos leigos só enxergam e ouvem beleza, brilho, alegria, perfeição. Só posso concluir que o tal avaliador deve ser uma pessoa muito emburrada com a vida.

O que remete ao treinamento a que, suponho, ele se submete. Horas de vídeo, concentração absoluta em detalhes, decodificação do movimento dos destaques, mil horas de leitura sobre religiões de matriz africana e a biografia do Milton Nascimento, noites insones para compreender mil técnicas de corte e costura — para no dia D ficar de olho na barra das saias das baianas. Aliás, exame oftalmológico em dia não pode faltar.

Carregar esse fardo o resto do ano não deve ser fácil. Ninguém vai se lembrar do dez, mas o 9.9 vai suscitar mágoa profunda, ira visceral, ódio eterno. Corre o risco de ser agredido nas ruas, se reconhecido.

O dia da apuração é quando o jurado se vinga. É ele com os dados do destino em mãos. Em seu envelope estão a vitória e a derrota, as lágrimas e o sorriso.

Eis um bom tema para um doutorado em psicologia ou antropologia, uma biografia escrita por Ruy Castro ou Lira Neto, uma reportagem do Globo Repórter: “Onde vivem, do que se alimentam, como se reproduzem”.

Deu Beija-Flor, mas o personagem mais interessante do Carnaval é o jurado, esse ser solitário e incompreendido.