Por ser usual o marido morrer antes da esposa, a viuvez para o homem é o inferno em vida. Muito mais pesado do que para mulher. Talvez, porque a mulher já é marinada pelas dores das cólicas menstruais, do parto e da própria condição feminina, milhares de anos de submissão ao homem, imposto pelo patriarcado judaico-cristão. Mulheres sobrevivem a longas viuvezes. Homens morrem logo, feito peixe largado no capim.Zé Ozeh viuvou-se depois de quarenta anos de casamento bem sucedido. Não se pode dizer que não havia rusgas e desavenças de vez em quando. Claro. Em todo casamento há. A não ser que um seja tão submisso ao outro que nunca levanta a voz contra uma palavra mal colocada ou uma apreciação depreciativa. Mas, quando o relacionamento é saudável, o entrevero serve mais para uma correção de rumos e reaperto dos laços. Zé Ozeh ficou viúvo, de uma viuvez sem prenúncios. Sua mulher, sadia feito um coco de macaúba, pedregulho de feldspato que nem broca consegue traçar. Numa noite, dormiram no horário de costume e, ao acordar, ela estava morta, fria e dura, corpo de madeira. Filhos morando no exterior, a dor da viuvez foi tão aguda que pensou em morrer também. Poderia ser pela dor ou pelo salto que empreenderia do trigésimo andar. No entanto, de dor não morreu e de saltar faltou-lhe animação. Para se livrar do luto fechado e sombrio, trocou o apartamento velho por um novo, num bairro mais alegre, na orla de um parque, onde havia lago, peixes, garças, martins-pescadores e, óbvio, mulheres caminhando pelo calçadão. Não que buscasse novos relacionamentos. Colírio sempre faz bem, sobretudo para olhos desidratados de tanto chorar. Cabelos pintados de loiro-poeira, passos claudicantes, Zé Ozeh desceu a primeira vez ao parque, tentando desligar o desejo de que a esposa estivesse com ele. A duras penas, deu uma volta e se sentou à sombra, carne trêmula, e pediu uma água de coco. Enquanto tomava, ajustando a embocadura dos lábios no canudinho, sentou-se na cadeira ao lado uma jovem, cuja beleza era realçada pelo top e o legging. Conheciam-se de vistas. Era vizinha de prédio, e ostentava cordialidade. Comprou também uma água, tomou e depois pediu para retirar a meleca do coco. Ela comeu com chupões turbulentos. Ele achou sensual.Confabularam. Ele falou da viuvez, da busca pela superação do luto. Esperando elogio para revidar. Ela contou ser casada de pouco. O marido, delegado de polícia.–Vixe, Maria! Tô correndo risco! –Perigo, nada. Delegado, mas de boa. –Bom saber! Posso te perguntar uma coisa?–Claro!–Se um dia você ficar só ou sentir necessidade de ficar com alguém, ficaria comigo?–É brincadeira! Não pode dar mão de amigo que já vem chaveco.–Por isso que é bom perguntar antes, né?Ela se levantou com gestos bruscos, vaidosa e ofendida, e se foi sem olhar para trás. Todos os dias depois, Zé Ozeh descia ao parque, dava uma volta, sentia a musculatura fortalecendo-se e responder melhor à caminhada. Tomava água de coco, pensando mais na mulher do delegado, do que na própria finada. Buscava superar as culpas pelos sentimentos que, talvez, fossem ingratos. A jovem senhora nada de aparecer.Certo dia, ela reapareceu. Festa para o coração de Zé Ozeh, botão de flor interrompido pelo estresse hídrico, e agora chovera. Continuava louco dentro das calças. No imaginário, entabulara tanta conversa com a jovem que ela soava íntima para suas emoções. Chegou nela como se não houvera entrevero. Ela deu um chega-pra-lá e ele recuou. Continuou indo ao parque. Toda vez que a via, buscava reaproximação e evoluir na conversa, com as devidas cautelas. Não havia aberturas.Um dia, alvoroço e comoção na cidade. O PCC, suspeito de assassinar um delegado. Exatamente o marido da jovem. Não tinha pais, irmãos, sequer algum parente por perto. Único braço amigo que a socorreu foi o de Zé Ozeh. Meses depois, o que era uma amizade mal começada virou amor aos corações enlutados e devolutos. Eles formam um amoroso e assimétrico casal.