Na verdade eu não quero morrer. Mas parece que minha geração ainda não alcançará o estágio científico da imortalidade, que os gurus futuristas prometem. Então, se é para morrer, quero morrer bem endividado. Endividado com muita gente. Sem deixar qualquer patrimônio como espólio para liquidar as dívidas. Muitas dívidas e nenhum seguro de cobertura de crédito, em caso de sinistro. Quero que o luto pela minha morte seja profundo e duradouro.Já que não vou alcançar a imortalidade pela ciência, quero prolongar a vida pelas memórias. Bancos e financeiras hão de anotá-las em seus anais, como se um caso de frustração retumbante. Com o suceder das gerações, nas empresas bancárias, que minha história se transforme em fracasso, um “failure case”, na linguagem dos instrutores gestoriais. E as gerações repassarão meu caso, que nem a história de injustiça e erro judiciário dos Irmãos Naves, que vai passando pelas sucessivas turmas de estudantes de Direito. Nisso, os irmãos Naves se eternizam.Em meu velório, não quero aqueles comentários levianos do tipo “Deus só leva os bons para morar com Ele”, “gente que nunca morreu tá morrendo”, “era meu melhor amigo”, “sem ele o mundo ficou mais pobre e sem graça”, “não existia homem melhor no mundo”, “era uma pessoa completa: bom amigo, bom filho, bom marido, bom pai e avô nem se fala”, “foi o melhor patrão que já tive” “podia receber todas as medalhas de funcionário do ano”, “hoje mesmo ele vai apear de sua nuvem no céu e Deus vai recebê-lo de braços abertos”. Não. Não quero essas chorumelas levianas que, uma hora depois de sair do cemitério, todo mundo já esqueceu. Quero pensamentos e comentários fortes e marcantes: “Desgraçado! Vai pagar as dívidas com os ossos queimando no inferno”, “devia ter me pagado pelo menos um pouco, antes de morrer”, “não sei como conseguiu passar a perna em tanta gente”, “tinha uma prosa boa, mas não pagava ninguém”.Com o resíduo de audição que ainda eu tiver, dentro do ataúde, quero ouvir minha mulher responder aos credores mais afobados que tive o capricho de não deixar nada de dinheiro nem de bens. Mas que dívidas deixei demais. E sentir a assistência olhando uns para os outros e concluir que são colegas de infortúnio, vítimas do mesmo devedor blefado. Quero ouvir meus filhos perguntar pra um advogado, que lá apareceu a mando de um banco, se a pessoa quando morre deixa dívida para os herdeiros.Até mesmo o padre, chamado para celebrar a missa de corpo presente, esquecerá suas obrigações rezatícias e entrará na conversa com os demais credores, alegando que eu era um dizimista relapso, um devedor remisso com as dívidas sagradas, pois não só deixou de recolher suas obrigações, mas ainda tomou dinheiro emprestado, a juro, da paróquia e foi enrolando, enrolando... Até parece que sabia que ia morrer. Na hora de descer meu caixão, no buraco, alguém fará um discurso irônico e enfezado, lembrando que fui um bon vivant, que sempre teve do bom e do melhor, mas não à própria custa, que eu era um exemplo para as novas gerações de como não se deve viver. Na hora de jogar as primeiras terras em cima de meu féretro, faltará espaço para tanta gente que, não podendo receber seus créditos, pelo menos, quer jogar terra em minha cara. Ao longo do tempo, serei o tema das conversas de botecos: “Dizem que morreu devendo só para duas pessoas: Deus e o mundo”. Das negociações bancárias: ”O sujeito morreu sem deixar bens e levou todo o meu capital de giro. Preciso alongar minha dívida”. Das desculpas de pais de família: “Com a morte do fulano, fiquei arruinado. Preciso baixar o valor da pensão”. Essa história passará de pais para filhos, para netos, bisnetos...Para a própria imortalidade, Machado de Assis escreveu ótimos romances. Para a minha, quero deixar dívidas. Muitas dívidas. E ainda peço que escrevam em minha lápide: Devo. Não nego. Um dia volto para pagar.