Vivemos um tempo hiperbólico. De um lado, uma turma meio orgulhosa da incoerência testa os limites da civilidade e da democracia, num paradoxo: são rebeldes agindo com violência para deixar tudo como sempre esteve. Reacionários desavergonhados, por assim dizer. De outro, um contra-ataque institucional de mosca tonta, respondendo excesso com mais excesso, esperneio que os tuteladores da vida alheia se apressam em chamar de censura.Como os ventos da história oscilam, precisaria ter vivido menos para louvar arroubos judiciais, mesmo vindos de quem eu simpatizo politicamente. Daqui a pouco, um magistrado envergado para outro lado está agindo para me silenciar. É um perigo. Mas também não contem comigo para sair em defesa do livre direito de ser cretino e covarde, protegido pela liberdade de expressão, porque palavras em circulação febril ferem de morte. Dou aula a estudantes trans em situação de vulnerabilidade, muitos expulsos pelas famílias que, pelo senso comum, estariam ameaçadas por eles. Uma piada tem, sim, o potencial de abreviar ainda mais a existência dos meus alunos, cuja expectativa de vida já é de fugazes 35 anos. Cabe cadeia? É uma boa discussão, caso eu ainda esteja vivo quando a espuma da passionalidade ideológica se dissiparÉ por isso que, quando essa verborragia digital me alucina, busco abrigo nos clássicos. Ali não há pressa, porque é justamente o tempo que se encarrega de sugerir novas verdades possíveis. Num mundo onde todos perseguem a certeza em vez da dúvida, a ambiguidade é indesejada. Tomo-a com apetite, também por rebeldia, mas, diferentemente da dos reaças, contra um estado de coisas que me enoja.Nesse espírito um tanto juvenil, finalmente li Medeia, de Eurípedes, peça escrita em 431 a.C., levado pelas mãos em um clube de leitura. A história é por demais conhecida: Medeia mata os dois filhos quando o marido, Jasão, decide se casar com Creusa (ou Glauce), filha do rei Creonte. O cara era um notório alpinista social.“Se maculam a honra em sua camanão há quem lhe supere a sanha rubra”.Os versos acima, bem como a ideia torta do descontrole emocional feminino, favorecem a interpretação, rasa, de que Medeia fez o que fez por ciúme. É uma simplificação que nega todo o caldo de violência a que ela estava submetida, no qual a vida sexual do marido pouco importa. “Para os mortais, o amor é um enorme mal”, disse ela.Medeia vinha da Ásia Menor, como “andarilha de incertas geografias”. Nunca foi aceita na Grécia. Vivia como uma hondurenha na América Grande de Trump: sempre lembrada da própria origem e convidada a se retirar. “Desaprovo a arrogância do nativo”, diz Medeia, no verso 223.O teatro grego reorganiza um material narrativo oral já existente. Na mitologia da época, Medeia era uma deusa de terras bárbaras, com fama de curandeira. Na peça, é uma mulher comum, sem poderes sobrenaturais, que renunciou à pátria e à família para apoiar o marido na conquista de glórias. O que recebeu em troca? O desamparo, o exílio, o preconceito e a xenofobia. Ao longo da peça, Eurípedes deixa claro o mal-estar com a presença dessa estrangeira no reino de Creonte.Justifica o assassinato dos filhos? Nem com piruetas retóricas. É um ato hediondo por definição, mas que não cai do céu. É um exagero contra o exagero. Enquanto a gente finge que não há um conjunto de humilhações contra o diferente, perpetradas sem pudor, mais teremos de punir a consequência sem mover uma palha para amenizar as causas.É um prato cheio para quem faz rir (!), ou se elege, sendo covarde.